Olhar é controlar

André Caramuru Aubert: ”O poder ferramentas cada vez mais eficientes para vigiar”

 

Em tempos de "sorria, você está sendo filmado", o poder tem ferramentas cada vez mais eficientes para vigiar e controlar

Controle é uma palavra com múltiplos significados. É, entre outras coisas, a agência de espionagem onde brilhavam a inteligência e a perspicácia superiores de Maxwell Smart, o Agente 86, que lutava contra os espiões da agência inimiga chamada, como não poderia deixar de ser, Kaos. Controle é, também, o que salva a sua sanidade diante da TV e o que os pais tentam o tempo todo, sem sucesso, exercer sobre os filhos. Há, porém, um sentido mais sinistro para a palavra.

O filósofo francês Michel Foucault morreu em 1984, quando a microinformática ainda era incipiente, não se falava em internet e os telefones celulares estavam no jardim da infância. Portanto, quando publicou seus textos sobre os mecanismos do poder (e do controle) e de como Estados e empresas modernos os aplicaram, o mundo ainda não apresentara, para ele, as maravilhas da tecnologia digital. É curioso imaginar como ele teria reagido diante das novidades, e o que teria dito aos que continuam a acreditar nas tecnologias digitais como ferramentas “libertadoras”.

O universo de interesses de Foucault era amplo: passava por prisões, medicina, escolas, governo, sexualidade, urbanismo, arquitetura, entre outros. Mas, no fim das contas, tudo girava em torno da questão do Poder, ou do seu irmão gêmeo, o Controle. E “controlar” pressupõe “olhar”. É por isso que Foucault “gostava” tanto do pan-óptico, o projeto de presídio criado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham em 1791, que trocava as escuras masmorras medievais, ocultas nos subsolos dos castelos, por uma estrutura circular, onde os presos podiam ser facilmente vistos o tempo todo, a partir do centro, sem nunca saber quando estavam sendo observados. Sobre sua criação, Bentham disse que era “um novo modo de obter o poder da mente sobre a mente, de uma forma jamais vista antes”. Ele não estava exagerando. O pan-óptico acabou influenciando projetos tão distintos quanto fábricas, quartéis e traçados urbanos. Em todos esses casos, a ideia era controlar, com eficiência, determinado espaço.

A ERA DO CARTÃO DE CRÉDITO

E hoje, quando o espaço se dissolveu em algo obscuro que chamamos de ciberespaço, será que o projeto de Bentham envelheceu? Como ficamos, nesses tempos em que se pode estar em todos os lugares sem sair do lugar? Em que olhar e ser olhado se transformaram em obsessão? Quando o Poder tem à sua disposição, mais do que nunca, ferramentas supereficientes para seguir, olhar e controlar? E não me refiro a um controle do tipo óbvio, como o das ditaduras mumificadas que estão desabando, uma a uma, nos países árabes. Nos nossos tempos de “Sorria, você está sendo filmado” (e ouvido, e rastreado), o pan-óptico está mais vivo do que nunca. Mais do que na forma, no conceito, exatamente da maneira como Foucault o interpretou. Pois o que Bentham se propunha a fazer, no fim das contas, ao trocar o chicote pelo olhar, era tornar o controle mais sutil e eficaz.

E ele não é justamente mais sutil e eficaz num mundo onde cidadão não é quem vota, mas quem tem um cartão de crédito? Que prende as pessoas no desejo insaciável pelo hiperconsumo? E no qual todos os dados a seu respeito podem ser facilmente acessados e cruzados, para que se conheçam seus padrões de consumo, seus desejos, suas frustrações e, é claro, sua situação fiscal? Do jeito que as coisas estão indo, você logo sentirá saudade do controle que seus pais tentavam exercer sobre você. Como nos tempos do Agente 86, a luta da Controle contra a Kaos continua. Só que agora os mocinhos mudaram de lado, e Controle é, me desculpem os ciberotimistas, o nome do inimigo.

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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