Racismo Camuflado

por Henrique Goldman
Trip #195

A única coisa que o politicamente correto faz é jogar os preconceitos sob o tapete

Sábado passado foi um dia de cão. Eu estava com meu filhinho de 3 anos numa enorme fila do caixa num supermercado aqui em Londres. Com aquela inocência típica de uma criança que descobre o mundo e se maravilha com cada detalhe, meu filho começou a encarar uma senhora negra que estava logo atrás de nós na fila. Secando a senhora com os olhos maravilhados, ele me perguntou, bem alto, em português: “Papai, por que esta mulher é marrom?”. A senhora percebeu que o menino tinha dito algo a seu respeito e, sorrindo, perguntou em inglês: “O que foi que você disse?”. Meu filho continuou calado, ainda mais abismado ao ver que a senhora, além de ser marrom, estava falando com ele. Eu hesitei um pouco, mas resolvi dizer a verdade e respondi com um sorriso apologético: “Ele perguntou por que a senhora é marrom”. Profundamente ofendida, a senhora me disse: “Você deveria educar o seu filho a não ser racista!”. E foi, com a cara amarrada, para outra fila. Ao meu redor, notei no olhar de muitas pessoas o desconforto, que ficou ainda maior quando meu filho começou a perguntar, agora falando ainda mais alto e em inglês: “Why did the brown lady leave, daddy?” (Papai, por que a senhora marrom foi embora?).


O que eu podia responder? “Filho, eles inventaram e implantaram no século 17 o modelo da escravidão colonial, cujos lucros astronômicos financiaram a Revolução Industrial, criando as bases do império britânico. Para gerar essa riqueza, por séculos milhões de vidas foram destruídas e um continente inteiro, a África, foi devastado. O legado de racismo e pobreza continua ativo, espalhado pelo mundo. Mas também, filho, neste país esquizofrênico, tem muita gente legal, e eles, praticamente ao mesmo tempo, inventaram o abolicionismo, movimento de massa em defesa dos direitos humanos. A filha-da-putice e a enorme culpa gerada por tamanha filha-da-putice sobrevivem ainda hoje. Por isso, não seria um problema perguntar para uma senhora loira por que ela é amarela, mas pode ser um problema perguntar para uma senhora negra por que ela é marrom. E olha, filho, aqui na Europa, onde a cor das pessoas é uma questão tão fundamental, nós dois, que somos brasileiros, somos considerados já meio marronzinhos. Mas não é um problema. É bom ser meio marronzinho.” Aproveitei que chegou minha vez no caixa para distraí-lo, sentindo-me aliviado por não ter que responder algo tão complicado.

Auschwitz Workout

Deixei meu filho em casa e fui à academia de ginástica, onde tive uma aula com uma personal trainer. Terminando um programa novo de exercícios, uma verdadeira sessão de tortura, eu estava encharcado, ofegante e esgotado. Brincando, perguntei para a personal trainer: “Este programa tem nome?”. Ela sorriu e disse que não, mas que eu podia me sentir livre para inventar um. E eu disse: “Se chama Auschwitz Workout”. Ela olhou para mim incrédula e disse: “O que foi que você disse?!”. Eu respondi: “Teu programa é uma sessão de tortura e extermínio e se chama Auschwitz Workout”. Furiosa, ela saiu andando com passo apressado pela academia. Eu fui atrás dela e perguntei: “Você se ofendeu?”. Ela respondeu com raiva: “Eu sou judia!”. E eu respondi: “Mas eu também sou judeu! Talvez por isso mesmo adoro uma boa piada de holocausto”. Minha explicação a deixou ainda mais indignada.

Tentei argumentar que sou brasileiro e, no Brasil, essas coisas têm um peso diferente. Adoramos piadas de judeu, de preto, de japonês, português, argentino. Contei pra ela que eu e meus amigos brasileiros – negros, árabes, japoneses e vira-latas – adoramos brincar de nos ofender com piadas racistas. E quanto mais podres as piadas melhor. Argumentei que, mesmo quando racistas contam uma piada racista, o problema não está na piada, mas no racismo do racista.

Reprimindo a piada pode-se criar a ilusão de que o racismo foi silenciado. A única coisa que a chatice do politicamente correto faz é jogar os preconceitos para debaixo do tapete. Mas cada argumento meu a deixava mais indignada. Resolvi simplesmente me desculpar. Mas vou ter que arrumar outra personal trainer.

Um dia vou ter que ensinar tudo isso para o meu filho. Vai ser necessária muita paciência. O mundo é muito engraçado. Mas também é um lugar muito complexo e cheio de dor.

*Henrique Goldman, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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