por Lia Hama
Trip #194

Ronaldo Fraga é um dos grandes estilistas do país, mas não liga para a moda; seu negócio é cultura

Ronaldo Fraga é um dos grandes estilistas do país. Mas não liga para a moda. Seu negócio é mergulhar na cultura brasileira e voltar à tona com obras de arte em forma de roupas. Trip embarcou com Fraga pelo Rio São Francisco para acompanhar o processo criativo e os verdadeiros bastidores dos desfiles desse artista

Rio São Francisco, próximo ao cais da cidade de Pirapora, no norte de Minas Gerais. Estamos a bordo do Benjamim Guimarães, barco a vapor construído em 1913 e trazido do Mississippi, nos EUA. Com capacidade para transportar 190 passageiros, é o último modelo movido a lenha na região. Ali o estilista mineiro Ronaldo Fraga conversa com o capitão Manuel Mariano da Cunha, 80 anos, 42 deles dedicados à navegação a vapor. No passado, seu Manuel percorria o trajeto entre Pirapora e Juazeiro, na Bahia. Hoje leva turistas para passeios pelo sertão mineiro. “Da antiga frota de navegação pelo São Francisco, qual era o vapor mais luxuoso?”, pergunta Ronaldo ao capitão. “O Wenceslau Braz. Teve muita criança que ganhou esse nome por causa dele. Era comum colocar nomes de barcos em recém-nascidos”, explica o comandante. “E isso aqui?”, indaga Ronaldo. “Ah, é o apito. Cada marinheiro tinha um jeito de puxá-lo. Era a forma de avisar a mulher que o marido estava voltando para casa.”

Faz parte da rotina de Ronaldo Fraga puxar conversa e ouvir “causos” em suas viagens Brasil afora. O que o estilista apresenta em seus desfiles nas passarelas da São Paulo Fashion Week é fruto de meses de pesquisas e viagens pelo país. É, aliás, a parte de seu ofício de que ele mais gosta. “Hoje passo mais tempo pesquisando do que qualquer outra coisa. Minha inspiração é Mário de Andrade, que, na década de 20, realizou uma série de viagens etnográficas ao Norte e ao Nordeste do país.” As fotos e os registros das aventuras do escritor foram reunidos no livro O turista aprendiz, que é como Ronaldo se autodefine. “Busco levar os lugares que visito para outras pessoas, seja por meio das passarelas, seja por meio de exposições.”

Além do Velho Chico – tema da coleção verão 2008/2009 –, Ronaldo já levou para seus desfiles o trabalho das bordadeiras de Passira, em Pernambuco; o couro de peixe do Pantanal; a crina de cavalo e a lã de São Borja, no Rio Grande do Sul; entre outros. Personalidades como Nara Leão, Zuzu Angel e Arthur Bispo do Rosário também já foram tema de coleções. “Hoje recebo cartas do Brasil inteiro sugerindo temas para meus próximos trabalhos. O pessoal do Sul me pergunta: ‘Por que você não faz algo sobre o Mário Quintana?’. Do Pará, me dizem: ‘O Círio de Nazaré é a sua cara!’.”

Desta vez, o passeio tinha como objetivo gravar o depoimento do estilista para a exposição “Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga”, inaugurada em 20 de outubro no Palácio das Artes, na capital mineira. A exposição é um desdobramento das pesquisas que Ronaldo fez para sua coleção e conta com as participações do ator Wagner Moura, que dá um depoimento sobre a construção de uma barragem que devastou a cidade onde ele morava – Rodelas (BA) –, e da cantora Maria Bethânia, que gravou um poema de Carlos Drummond de Andrade sobre o São Francisco. Bethânia, aliás, foi a trilha sonora da viagem, por meio dos CDs que o estilista colocava a toda hora no aparelho de som. “Para mim, a voz do São Francisco é a Maria Bethânia”, explica Ronaldo, amigo da cantora e a quem não poupa elogios. “É a maior artista do Brasil. Ela, quando respira, já é maravilhosa.” Com cabelo moicano, bigode e óculos coloridos, Ronaldo posou para as câmeras da equipe da exposição e para nós. Performático, fez fotos em meio ao vapor, subiu no mastro e assumiu o leme do barco. Nos intervalos, conversamos com ele sobre seu processo de criação. A entrevista foi feita em várias etapas, intercaladas por refeições à base

de muitas postas de surubim e goles de cerveja.

Li uma declaração sua dizendo que “detesta moda”, que ela é só uma desculpa para você fazer suas pesquisas e viajar. É isso mesmo?
[Risadinha] Eu costumo dizer que moda é interpretação de texto, de um contexto cultural, econômico e social de uma época. Foi por esse conceito que me interessei e, quando vi, tinha se tornado o meu ofício. Agora, a moda pela busca da tendência que foi lançada em Paris, do que virou hype, do comprimento que desceu 3 cm, isso não me interessa. É uma coisa que olha unicamente para o comércio.

Como foi o seu começo como estilista?
Eu sempre desenhei muito bem. Fazia qualquer curso de desenho, desde que fosse gratuito, já que não tinha dinheiro. Aí encontrei uma amiga que me falou de um curso no Senac. No fim do curso, tirei a nota mais alta. O setor de colocação profissional do Senac me ofereceu um emprego para desenhar em uma loja de tecidos. Eu tinha 16, 17 anos. Depois uma confecção me contratou. Eu não tinha vivência de moda feminina, nenhum repertório. Não tinha irmãs nem mãe, pois ela já tinha morrido. Então o que eu fazia? Andava pelas ruas e observava as roupas. Olhava uma gola de que eu gostava e falava: “Vou registrar”. Olhava para uma manga e fazia o mesmo. E fui montando meus Frankensteins. E como eu fazia para descobrir a roupa que as pessoas queriam? Puxava conversa. Ouvia as histórias delas. O que todas tinham em comum era que a roupa era um instrumento para a conquista amorosa – com o outro, com o grupo, consigo mesma. Por trás de toda roupa, está escondida uma história de amor.

Como foi a trajetória até você se tornar famoso?
Nos anos 90, ganhei uma bolsa de estudos num concurso. O prêmio era uma pós-graduação na Parson’s School de Nova York. De lá, fui para Londres e depois voltei ao Brasil. Fiz a coleção “Eu Amo Coração de Galinha”, que apresentei no Phytoervas Fashion em 1996. Na época, a Erika Palomino escreveu na Folha que eu era a “zebra da noite” e já dizia que, por trás daquele teatro todo, tinha muita moda, que era preciso prestar atenção. Depois disso, não parei mais.

Como é o seu processo de criação artística? Como você escolhe os temas dos desfiles?
Escolho tudo aquilo que me dá comichão, o que me dá vontade de pesquisar sobre o assunto. Em cada desfile, é como se eu estivesse contando uma história. “Ah, vamos falar de Nara Leão?” Aí eu mergulho e leio tudo sobre Nara Leão. Fico meses pesquisando, conversando com as pessoas, visitando os lugares ligados àquele tema.

Qual é a importância da trilha sonora nos desfiles?
A música é a voz da roupa. Antes de pensar na roupa, tenho que pensar no contexto da história que eu quero contar. Com isso definido, naturalmente a roupa aparece pedindo para ter determinada cor, determinado tecido, volume e comprimento. Por isso que eu digo que não faz sentido ficar acompanhando qual é o hype do momento, o que está na moda lá fora, entende?

Como é o seu trabalho com as comunidades de artesãos pelo Brasil?
Na primeira vez que eu levei esses trabalhos para a passarela, tive muito pudor. Porque você dá uma exposição para aquelas pessoas, e a expectativa é que essa exposição continue. Mas eu só posso ficar com aquilo por uma ou duas coleções. Então, agora, com o trabalho com as bordadeiras de Pernambuco, mudei de tática. Se você for a minha loja e comprar uma roupa, vai encontrar uma etiqueta com todas as informações: bordado na cidade tal, por tal grupo e o e-mail dele, caso queira entrar em contato. Descobri que a melhor forma de ajudar essas pessoas é expor, oferecer a minha vitrine e a minha passarela. É fácil? Não é. É tudo longe, é tudo difícil. Tem o problema da logística, da gestão dessas pessoas, de elas não entregarem na data combinada. Não é fácil. Mas é algo de que eu não quero desistir.

Quais são os seus próximos projetos?
Vou desenvolver um desfile inspirado no cinema brasileiro. Tenho que escolher 40 filmes e criar vestidos a partir deles. É um projeto da Petrobras que vai abrir os festivais de cinema no ano que vem: Paulínia, Rio, Recife, Gramado, São Paulo. Outro projeto é uma linha de cama, mesa e banho para a Tok&Stok. Essa exposição sobre o São Francisco eu quero levar para 15 cidades. E tem um livro que eu quero fazer com os meus cadernos de anotações para as coleções.

Como é a sua relação com os outros estilistas?

Tenho uma relação cordial com todos eles. De proximidade, tenho com o Jum Nakao. A gente sempre sai para jantar juntos. Admiro também a Danielle Jensen, da Maria Bonita, que tem um trabalho maravilhoso. Gosto do André Lima e da Gloria Coelho.

O que você acha do Pedro Lourenço, filho da Gloria Coelho e do Reinaldo Lourenço?
O Pedro Lourenço teve uma formação que tem tudo para torná-lo um grande estilista. Desde bebê, ele frequentava os desfiles. É um menino destemido, com 20 anos já tem uma marca. Mas espero que, no futuro, ele olhe com carinho e afeto para a cultura brasileira.

E a sua mulher, Ivana, qual é o trabalho dela?
A Ivana é quem cuida da minha confecção. Ela teve uma em Montes Claros, no norte de Minas. Tinha um namorado que, toda vez que dava um presente para ela, dava uma roupa minha. Ela adorava. Aí ela desmanchava, copiava os modelos e reproduzia na loja dela. Depois ela se mudou para BH e foi trabalhar comigo. Nos casamos e temos dois filhos, Ludovico e Graciliano.

Essa ligação seria mais antiga, não? Eu li que veio de vidas passadas, segundo uma esotérica de BH...

Uma esotérica me disse que em outra vida eu era um comerciante de tecidos no Líbano. Eu vendi tudo e me mudei para Paris. Os franceses achavam que aquilo ali era uma roupa de árabe, engraçada, e não davam bola. Minha única cliente era uma mulher casada com um francês. Quando o marido morreu, nos casamos e construímos um ateliê, que depois pegou fogo. Foi um incêndio criminoso. Essa mulher teria sido reencarnada na Ivana.

Você é religioso? Acredita em reencarnação?
Quando me perguntam isso, digo que sou um curioso. Tem uma frase do Drummond muito boa: “Ele [Deus] não me incomoda”.

Para finalizar, queria fazer uma pergunta diretamente relacionada ao tema desta edição. A arte pode ser transformadora? Como?
Sem dúvida alguma. A artista plástica Louise Bourgeois dizia que a arte é um respiro num universo de insanidade. Então são esses momentos de respiro – uma imagem, uma música, uma roupa – que, por uma fração de segundo, te tiram do chão e te colocam no eixo. Muita gente acha que é o inverso, que eles te tiram do eixo. De jeito nenhum. É um momento em que a arte te coloca no eixo. Isso dura um segundo. Mas esse segundo pode ser transformador.

 

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