O rei não morreu

Caramuru diz que prefere a vitória de Serra, pois significará a alternância no poder

Você pode deixar a monarquia, mas a monarquia não deixa você. No país dos reis da picanha, das baguetes, dos lustres, de tanta coisa, a política segue sendo uma coisa tão autoritária que dom Pedro 2º, aquele rei velhinho, com cara de Papai Noel, continua a ser lembrado, com escravidão e tudo, como um dos mais sábios e liberais governantes brasileiros de todos os tempos. A eleição presidencial deste ano será, na prática, uma disputa entre Serra e Dilma, com a Marina correndo por fora para marcar presença. O máximo de exercício democrático para o qual você será não convidado, mas intimado (pois o voto é obrigatório) a fazer será registrar seu voto na urna eletrônica, a partir daí ele se diluirá entre outros 134 milhões.

Do dia da eleição em diante, o presidente eleito se comportará como um monarca, fazendo praticamente o que bem entender durante quatro anos, negociando apenas com os deputados, que não representam ninguém além dos interesses deles próprios ou de lobbies com muito dinheiro e força. Num modelo político como o nosso, por melhores que sejam (e parecem ser) as intenções de Marina Silva, ela simplesmente não conseguiria governar.

A Constituinte de 1988 teve a oportunidade de inaugurar um regime político democrático e moderno, mas a verdade é que perdeu a chance. Criou uma Carta enorme, cheia de tópicos bem-intencionados, mas impossíveis de serem colocados em prática (como a fixação da taxa de juros em 12%), e falhou onde realmente importava. Para começar, deixamos de lado o parlamentarismo, que, se não é perfeito, é infinitamente melhor que o modelo presidencialista de tipo americano que adotamos.

Também ignoramos que partidos devem representar ideologias, segmentos ou mesmo regiões do país e não ser meros clubes de negócios. Ignoramos o voto distrital misto e outros recursos que poderiam deixar os políticos mais próximos de nós. Nos Estados Unidos, os eleitores têm "o meu deputado". Nós, nem isso. Em nosso país, o Executivo legisla e o Legislativo endossa. Para que endosse, o Executivo precisa cooptar os partidos (pois não há identificação programática), e é daí que brotam os mensalões e os loteamentos de cargos e ministérios. Não adianta dizer que "o Brasil está melhor" (e está mesmo), pois esse argumento já foi exaustivamente invocado, de Vargas a Médici.

À LA MAQUIAVEL

É claro que não há, por definição, um modelo perfeito: democracia implica representatividade, significando que, em alguma medida, o poder será transferido do eleitor para o eleito. Mas dava para ser melhor. Nosso modelo está bem mais para o pragmatismo de Maquiavel do que para o iluminismo de Montesquieu. Qualquer dos eleitos, Serra ou Dilma, fará um governo semelhante, assim como foram parecidos, nos defeitos e nas qualidades, os de FHC e Lula. Prefiro que Serra vença, assim como preferi Lula há oito anos, pois isso, pelo menos, significará alguma alternância no poder. Adicionalmente, me parece que a escolha de Dilma como sucessora "porque eu quis" foi uma decisão um pouco extrapolante na atitude monárquica de Lula. Até dom Pedro 2º teria consultado as bases antes de tirar do bolso um candidato desconhecido. Mas, enfim, não perderei o sono com isso.

Nós, brasileiros, não entendemos ainda que a democracia, muito mais que o fim, é o meio. É menos o resultado e mais o processo. É menos a transferência do poder e mais o exercício cotidiano dele por cada um de nós. É menos a vontade da maioria do que o respeito pelas minorias. Enquanto não aprendermos isso tudo, continuaremos a ser os felizes súditos do imperador: pois a cada quatro anos, na "festa democrática" na qual nos intimam a comparecer, gostamos de cultivar a ilusão de que escolhemos o rei e controlamos nosso destino.

 

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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