Para muitos ele era o sem graça dos Trapalhões, mas Dedé sabia bem o que estava fazendo

Desde que veio ao mundo, ele está no showbiz brasileiro. Você o conhece como Dedé, o "sem graça" dos Trapalhões. Mas Manfried Santana, o diretor/roteirista/ator, sabe disso. Era o seu jeito de te fazer rir

Desde os 3 meses de idade, isso em 1936, quando foi levado ao palco pela primeira vez, Dedé Santana vive de comédia. No rádio, nos palcos, nos picadeiros e desde que a TV existe, ele está lá, levando essa vida para que alguém, do outro lado, ria às suas custas. Por isso é difícil, quase doído, para o repórter sugerir ao presente perfilado que muita gente não vê graça em sua pessoa. Daí o alívio profundo quando escuto Dedé dizer sorrindo com certo orgulho: "Eu não era engraçado e nem era pra ser". Sempre o certinho, o passado pra trás, o homem que buscava a ordem dentro das tramas estapafúrdias dos esquetes dos Trapalhões.

Uma espécie de altruísmo artístico, a voluntária posição de escada para que outros brilhem nunca foi motivo de neuroses em sua cabeça. "Rapaz, estou nessa desde que nasci. Sempre soube muito bem o que precisa para o espetáculo funcionar. Meu papel era importantíssimo", explica com a moral de quem é comediante antes mesmo de Renato Aragão. Dedé fez de tudo: palhaço, trapezista, piloto do globo da morte, cantor, ator e uma infinidade de bicos para completar o apertado orçamento da família circense. E enquanto narra sua longa saga, se perdendo em causos e nomes de um showbiz arcaico, vai revelando um mundo difícil de ser imaginado por qualquer aspirante à fama nos dias de hoje.

Decorava textos 10 min antes de subir ao palco, inventava programas de rádio que iam ao ar no fim do dia, repetia piadas sem o menor constrangimento, ganhava aplausos por conta de uma simples careta e, no improviso, enfrentava o público com a naturalidade de quem entra em casa. O mundo parecia mais mambembe, ingênuo, e a televisão nascia e crescia rápido. E quem estava por trás e na frente das câmeras vinha, necessariamente, de um universo distinto. "A grande diferença daqueles tempos era que a gente podia errar...", elabora para logo voltar ao papel de escada: "Aliás, essa frase não é minha, é da Glória Pires."

Foi esse confortável papel que o erro tinha no passado que encadeou sua vida. Na base do acaso e do risco, aceitou fazer dupla com Renato Aragão. "Me avisaram que tinha um comediante nordestino precisando de um companheiro. Sozinho ele não tinha muita graça mesmo. Mas, quando vi as coisas que o Renato estava escrevendo, na hora aceitei trabalhar com ele." E surgiu a dupla que começou a fazer sua fama - e sua fama de loser - na ribalta.

Imitation monkeys
Entre quadros de rádio, números em teatros e circo e esquetes da prototevê brasileira, Dedé guardava um sonho de infância. Dirigir cinema. E tinha um roteiro embaixo do braço: A onda do iê-iê-iê. Vai, Dedé, explica... "Você sabe que brasileiro é macaco de imitação. Até hoje é assim, naquele tempo então..." Artistas da jovem guarda fazendo versões descaradas dos sucessos do jovem rock'n'roll, e uma história ingênua sobre um garoto que tenta emplacar seu primeiro hit. Dedé e Didi eram os anti-heróis que ajudavam o rapaz a ganhar um festival de canções. O orçamento para a película foi ridículo, o estúdio só ofereceu rolos em preto e branco. Mas o début de Dedé na direção foi um estrondo. Os jovens brasileiros, sedentos por macaquices copiadas, lotavam cinemas e dançavam de pé nas cadeiras. Baixava polícia nas loucas farras nas salas de cinema - e foram batidos recordes de bilheterias em 1966. Novos contratos para produções cômicas com seu novo parceiro. Tudo bem improvisado, tudo com aquela anacrônica vocação ao erro. Tudo com vultosos resultados de público.

 "A grande diferença daqueles tempos para hoje é que antes a gente podia errar"

A TV Excelsior cresceu os olhos e os convocou para um novo programa: Os adoráveis Trapalhões. Ivon Cury, Ted Boy Marino e Lúcio Mauro estavam na trupe. Não durou muito a atração, mas o nome virou um carma. Quando a Globo, anos depois, chamou a dupla para um novo humorístico, mantiveram Trapalhões como alcunha. Dedé trouxe seu amigo de longa data, o carismático integrante dos Originais do Samba Mussum. "Ele sempre ia na minha casa, e eu sabia que ele tinha potencial para comédia. Mas foi o Chico Anísio que deu a grande dica. Disse para ele falar tudo com ‘is' no fim." Assim surgiu Mussum e seus cacildis, forévis. Didi veio com um mineirinho que conheceu no rádio, Zacarias. "Lembro que ele chegou parecendo um gerente de banco, não tinha graça nenhuma. Quando colocou a peruca e começou seu número... eu quase caí no chão de tanto rir", Dedé se lembra. E deu no programa de humor mais bem-sucedido do Brasil, que ainda hoje desperta furiosas multidões no YouTube e em infinitas referências da atual cultura pop. Mas entre todas as estampas de camisetas espertinhas, entre todos os hits em reprise na internet, nunca se vê Dedé Santana. Seu protagonismo na biografia trapalhã sempre se traduz no conformado coadjuvante aos olhos públicos.

Quando a morte levou Zacarias e Mussum, colocou um fim nada engraçado no programa de domingo. O humor brasileiro também mudava aos poucos, com o sucesso de um novo tipo de escracho televisivo. E, de súbito, Didi e Dedé não faziam mais sentido na grade da Globo nos recém-nascidos anos 90. Ninguém deu falta a princípio, já que a reprise dos Trapalhões nas tardes da semana saciava os fãs e uma nova geração. Tanto que poucos se deram conta de que, pelos quatro anos seguintes, eles foram sucesso de audiência em Portugal. Com piadas de português, literalmente, já que seus redatores eram locais, tornaram-se de novo uma dupla, e Dedé garante que nunca foi tão bem tratado. Em 94 a trapalhônica prorrogação portuguesa acabou, e a Globo assinou de novo com Didi. Mas Dedé não teve a mesma sorte. Foi aí que a vida perdeu um pouco a graça.

Deus é dedéis
Sem emprego e se sentindo abandonado pelo irmão de comédia, Dedé ganhou muito peso e perdeu espaço. Seu ganha-pão, durante as vacas magras, foi acompanhar um palestrante do Sul do Brasil que dava seminários motivacionais usando a vida de Dedé como exemplo de superação, improviso. Ele, obeso, era de novo o protagonista-coadjuvante do enredo que criou. Até que a saúde sucumbiu, e seu coração desandou. "Fui parar no hospital, e os médicos só me davam diagnósticos terríveis para minha coronária. Até que, do nada, apareceram uns pastores no meu quarto. Quem os mandou foi uma mulher que conheci no avião anos atrás. Ela havia me dito que Deus tinha um plano para mim. Na época nem dei bola..."

 

Hoje, com salário e regalias da Globo, não abre o bico para criticar Didi ou a rede de TV

Dedé imita os pastores e, no meio da entrevista, começa um pequeno número. Grita como os pregadores e refaz com caretas suas reações de internado descrente. Mas ele jura: "Fui curado. Meus exames seguintes não deram nada. Tive que me converter". Evangélico, usando de sua não perecível fama, gravou disco com o filho e dava testemunhos em igrejas da Assembleia de Deus quando a Record, a evangélica emissora que tanto aprecia globais desempregados, pescou Dedé do limbo. Virou o professor de uma das infinitas escolinhas humorísticas da TV.

Foi nesse tempo que começou a falar à imprensa de novo, e não se conteve muito ao abrir a decepção com a Globo e com Didi. Uma desilusão pública aos olhos públicos que durou até 2004, quando reapareceu de surpresa, saindo de dentro de um baú, para fazer as pazes com Didi ao vivo, no Criança esperança. Na ocasião, uma piegas canção sobre amizade retumbava em rede nacional. A bandeira branca não se tornou um novo contrato com a antiga empregadora. Foi quando Beto Carrero, antigo homem de marketing dos Trapalhões nos anos 80, convenceu Dedé a ser sua dupla em um novo projeto. Ele deveria ajudar no roteiro e na direção dos atores, aparando as arestas cômicas do Comando maluco. Foram juntos ao SBT, e Silvio Santos topou de cara. Foi o patrão, jura Dedé, quem decidiu colocar o Comando no mesmo horário do global Turma do Didi aos domingos.

Questão global

Chegou a ganhar do antigo parceiro em audiência, e uma estranha vingança, nunca buscada, se realizou. Até que a morte, com seu péssimo senso de humor, levou Beto Carrero. E Dedé perdeu, além do amigo, seu espaço na TV. Era 2008, e o luto fez o telefone bater. Era Didi... lamentou por Beto e disse que estava mexendo seus pauzinhos. Queria Dedé de volta à Globo. Dias depois, o convite era oficial. Hoje, com salário e regalias da Globo, ele não abre a boca para criticar Didi ou a TV. Na verdade não se compromete fazendo críticas ou destilando antigas histórias mal contadas de contratos e desafetos. E apesar da sua antiga fama de galã, de seu casamento com Suzana Mattos, capa da Playboy nos anos 80, ele também poupa detalhas da boa vida no auge da fama.

Prefere falar do presente em Curitiba, onde vive há menos de dois anos. É dono de uma produtora de vídeo e programas de TV por lá. Trabalha com o filho Átila, evangélico antes do pai, nos negócios e nos projetos dentro da igreja. E, nos bastidores, esquadrinha planos para sair da meia-sombra depois dos 73 anos de idade. Está criando o Instituto Dedé Santana, entidade assistencial para crianças carentes. E considera uma candidatura política a algum cargo municipal pelo PST ("O partido do Psiti!", faz troça). Viaja uma vez por semana ao Rio para gravar a Turma do Didi. E ainda acha tempo para fazer aparições gratuitas em circos pequenos nos arredores de Curitiba. Uma gentileza que faz quase por obrigação moral: chamariz para o público de 8 a 80 anos que reconhece a graça no "sem graça" Dedé e mantém o circo de pé. Olhando para trás, para 70 anos de carreira com tantos cacos, improvisos e percalços, não consegue lembrar de um erro grave, uma falha que mereça arrependimento. "Eu nasci do circo. Sei que erros são parte do espetáculo. Essa é a vida do palhaço..."

Agradecimento www.hoteismabu.com.br

 

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