Errrologia aplicada

A ciência estaria dando voltas atrás do próprio rabo se não fosse um erro aqui, outro ali

A ciência estaria dando voltas atrás do próprio rabo se não fosse um errinho aqui, outro ali. Ou, usando o termo que o cientista canadense Kevin Dunbar prefere, se não fosse o "inesperado". Ele descobriu que, se Deus escreve certo por linhas tortas, a ciência também

É com ânimo, e um resignado senso de realismo, que Kevin Dunbar sentencia: poucas coisas são mais frustrantes que a ciência. Alguém que dedica a vida a provar hipóteses em um laboratório consegue de tudo -- menos realizar suas expectativas. Como cientista que é, tende a não cuspir certezas sem provas. Por isso suas palavras são mais do que mera opinião. Desde os anos 90, em seu laboratório em Toronto, Kevin vira seus olhos, scanners e recursos para uma pesquisa tão óbvia quanto original: entender como cientistas pesquisam e entendem suas descobertas. Ao investigar as bases neurológicas e psicológicas a que ele próprio está submetido no dia a dia, ele descobriu que o erro, o imperfeito, o inesperado são a base e a rotina da ciência. E mais do que isso: o modo como o cérebro científico lida com o imprevisto dá surpreendentes pistas da própria relação do ser humano com tudo aquilo que parece dar errado.

 

Suas descobertas não deixam dúvidas: mais da metade dos resultados das pesquisas científicas (em quase qualquer área do conhecimento) é não apenas inesperada como desafia a solidez da teoria que sustenta a hipótese do experimento. Algo desejável, muitos podem argumentar, já que desafiar e reconstruir teorias é o único jeito de aprofundar nosso entendimento da realidade. Mas não é tão simples assim. O cérebro também tem seus arroubos de imprevisível, e Kevin descobriu como nossos miolos trapaceiam para que enxerguemos o imprevisto como um erro, um acontecimento casual ou digno de desprezo. O cérebro faz um truque para que nossa ideia anterior permaneça intacta. Em resumo: nossa mente não gosta de estar errada.

Essa descoberta, amparada de mapeamentos da atividade cerebral, não sugere automaticamente que essa "cegueira" seja prejudicial ao desenvolvimento científico. Ao contrário, nossa instintiva recusa em aceitar o inesperado tem uma função prática. Kevin explica: "Acho que somos inerentemente conservadores. Se todo fato inesperado nos fizesse questionar antigas teorias, estaríamos em um beco sem saída".

Mas há, é claro, um lado negativo na cabeça-dura do cérebro. O apego inconsciente às ideias antigas pode não só atrasar a ciência como manter o homem em um perigoso estado de negação da realidade. Se o cérebro tem, realmente, tendências a manter estática sua visão de mundo, Kevin pode nos ter dado fortes indícios neurológicos para as bases do preconceito e dos mitos que ainda assombram um mundo cada vez mais desvendado. Kevin não gosta da palavra erro. Prefere entender como "eventos inesperados" os tropeços da ciência e, em extensão, muitos dos escorregões do homem comum. Se algo merece o título de erro para Kevin, é nossa incapacidade de abraçá-lo como um bom e peculiar amigo.

Explique um pouco como se dá a sua pesquisa.
Eu uso diversos métodos para descobrir como cientistas fazem ciência. Meu primeiro tipo de abordagem é o que eu chamo de invivo. Isto é, investigar pessoas em seu contexto natural. Para cientistas, eu gravo e filmo eles em suas reuniões e laboratórios. E faço isso por longos períodos de tempo. Depois eu complemento esse material com entrevistas que faço, leio seus trabalhos e propostas de teorias. A razão para ir fundo no dia a dia deles é que há muito pensamento espontâneo nas reuniões. Isso me deu a oportunidade de ver novos achados científicos se desenvolvendo diante de meus olhos. Mas esses métodos naturalísticos só te levam a certo ponto. Também faço experimentos convencionais, no laboratório, com scanners cerebrais muito sofisticados, grupo de controle etc. Outra abordagem minha é perguntar a eles como chegaram às novas ideias, de onde elas vieram etc. Eles tentam me explicar com boa vontade, mas no fundo estão construindo uma história e quando eu comparo com o que aconteceu nas minhas gravações prévias vejo uma enorme diferença.

Por exemplo...
Uma vez uma descoberta aconteceu depois de um estranho resultado que parecia um erro. O professor encarregado do laboratório reviu os dados, chamou toda a equipe e quebraram a cabeça para construir uma nova teoria consistente. Quando, tempos depois, eu perguntei ao cientista como havia sido a descoberta, ele disse que foi muito óbvia, como 2 + 2 = 4. Não era mesmo o caso...

E o que isso te diz como pesquisador?
Que eles estão tão ocupados fazendo ciência que se esquecem do processo mental que os levou às descobertas. E que não são conscientes de como o cérebro se comporta durante e depois de suas investigações. E outro mito que esse método ajudou a derrubar é o do cientista solitário. Descobrimos que muito é fruto de trabalho em grupo e que raciocínio distribuído entre várias pessoas leva a insights com muito mais frequência do que o imaginado.

O cérebro parece bloquear resultados inesperados antes que eles cheguem à consciência

Depois de tantos cientistas estudados, como você define o papel dos erros no desenvolvimento científico? Eu acho que "erro" não é a palavra certa. O melhor seria chamar de inesperado. Cientistas conduzem experimentos e obtêm algo em torno de 40% a 60% de resultados inesperados. O problema para eles é determinar o que foi a causa do achado imprevisto. A primeira coisa é checar se houve, de fato, um erro no processo. Se acharem um erro, repetem o experimento. Mas e se não houve erro no processo e eles obtêm os mesmos resultados novamente? Isso significa que a teoria está incorreta? O que descobrimos é que cientistas normalmente pensam que foi apenas um erro mesmo, mas na hora que os resultados vão se repetindo começa a virar uma pista de que há algo interessante acontecendo. Eles começam a procurar novas teorias, explicações e mecanismos que possam explicar o inesperado. Um fenômeno similar ocorre quando pegamos estudantes e damos a eles dados inesperados e inconsistentes de acordo com sua teoria preferida. Eles ignoram os dados e os atribuem a enganos ou ao acaso. E quando nós escaneamos os cérebros deles vemos o que realmente está acontecendo.

O quê?
A parte exata do cérebro que diz que houve um acidente ou algo estranho fica mais ativada. Mas o que foi realmente impressionante é que uma parte do cérebro chamada córtex cingulate anterior parece bloquear os resultados inesperados antes que sejam considerados. Quando o cérebro encontra algo que ele esperava, ativa a parte dele responsável por formar memórias. Quando o resultado é inesperado, não! Isso significa que acontecimentos inesperados possivelmente sejam barrados ou ignorados automaticamente, sem muita escolha.

Isso parece uma desvantagem terrível para quem está atrás de novas informações...
Mais ou menos. Todo esse fenômeno de ignorar resultados inesperados é uma parte real e importante da ciência. Imagine se todo cientista visse os resultados imprevistos como algo novo e interessante. A ciência entraria em um beco sem saída. A verdade é que muitos desses achados não valem a pena ser seguidos, mas alguns sim. A chave é descobrir quais valem a nossa atenção especial.

O que seu estudo sugere sobre os métodos usuais de hipótese/teste?
Os livros ensinam aos estudantes que cientistas primeiro precisam de uma hipótese e depois conduzem um experimento para testá-la. O que vejo é que eles só fazem isso parte do tempo. O resto do tempo eles fazem experimentos para descobrir o que deu errado. O método de hipótese/teste não é como a ciência funciona na realidade. Com os avanços em biologia molecular, biólogos hoje dizem que nem precisamos mais de hipóteses. Podemos inverter a lógica e tirar uma tese depois de um experimento ser concluído. Isso muda fundamentalmente a maneira como vemos e fazemos ciência.

Por que não aceitamos mais facilmente nossos enganos?
Acho que a razão pela qual não aceitamos informações que desafiam nosso modelo já construído é porque somos inerentemente conservadores. Se a teoria que temos funciona quase todo o tempo, por que colocar tudo a perder por alguns resultados inesperados?

Qual o maior erro da nossa cultura no que diz respeito ao entendimento da mente? Nós podemos sentir a mente como uma unidade, porque é o que experimentamos. Mas na realidade a mente/cérebro está combinando múltiplos tipos de informação de diferentes modos sem que percebamos. Isso se reflete na ideia de que há um método científico verdadeiro apenas. Há muitos métodos possíveis... Pessoas normais, cientistas e a ciência em si precisam ignorar muita informação para existir. Parte do que nos faz uma espécie interessante é a capacidade de ignorar muito do que está acontecendo ao redor para nos concentrarmos em objetivos e sonhos.

fechar