A vida não é doce no salgado

Destrinchamos a fórmula do Sem meias palavras, o programa de TV mais honesto do Brasil

Foi cachaça. Foi. Bebendo desde umas horas, negócio de nove da manhã. agora, às 11 da noite, diversas latinhas de pinga adoçada depois, sinto o bucho judiado por um sábado longo regado a bode na brasa, inhame, pedaços de queijo, charque, copos cheios de dobradinha, visitas a duas delegacias, uma apreensão de crack e uma ocorrência de suicídio – um sujeito que se enforcou na sala de casa, já cheirando muito mal, putrefando há alguns dias em uma área pobre em um canto de Caruaru. Sim, foi cachaça, mas só ela não explica o que esse estranho sorriso está fazendo na cara do presente repórter. A alegria ante tão indigesta resenha vem do fato de que ao meu lado uma voz empostada e sem frescura reporta causos hilários que podem envolver cadáveres, ladrões, crack, bodes, delegacias e muita aguardente. Apenas uma lasca da biografia profissional do meu guia em Caruaru, Givanildo Silveira – o repórter do programa Sem meias palavras.

O leitor que já gastou tempo no YouTube há de saber quem Givanildo é. O homem atrás do microfone que revelou bebuns de meteórico carisma na delegacia do bairro do Salgado. Jeremias José, Leonaldo Gomes de Lima, Caninha já destilaram antológicas verborragias. Foi Givanildo quem trouxe à ribalta casos tocantes como o do cachorro Tom, da raça pinscher, que preferia o sexo com garrafas PET a com sua então namorada, uma poodle três anos mais jovem que atende por Lala. E a lista corre na internet.

Mas o que o webespectador não sabe é que por trás do folclórico astro do YouTube está uma celebridade de primeiro escalão na esfera midiática do interior de Pernambuco. Afinal, o Sem meias palavras mantém a estratosférica média de 67 pontos de audiência diariamente.

Todo dia o noticiário vai ao ar pela TV Jornal, afiliada do SBT, e humilha a família Marinho, que leva apenas 11 pontos na faixa da uma da tarde, quando exibe o Globo esporte em rede nacional. No staff do Sem meias, duas metades: Edeilson Lins, o âncora, e Givanildo, o único repórter do show. São 40 minutos de reportagens locais que cobrem toda e qualquer ocorrência policial nos arredores de Caruaru. Mas é apenas uma fatia do bolo de ocupações jornalísticas de Givanildo, um trabalhador que espantaria o mais caxias dos workaholics. Espia:

Às exatas 5h40 da matina a voz de Givanildo entra ao vivo com as primeiras chamadas do programa diário no rádio A hora da justa. Trata-se de uma espécie de Sem meias palavras sem imagens, de uma hora e meia de duração, em que Givanildo e Edeilson destrincham os BOs do dia anterior, e entrevistas com meliantes, vítimas e encrenqueiros gravadas por Silveira são veiculadas. De apreensões de crack e latrocínios a peculiares roubos de jegues. Ao meio-dia entra de novo na rádio para o Plantão de polícia, com reprises dos mais fortes ou divertidos casos do dia. Às cinco da tarde, de segunda a sexta, ele apresenta sozinho um programa de forró na mesma rádio. Ao vivo, ele improvisa ao microfone, transmitindo da calçada de uma avenida movimentada da cidade. Um trio de forró capricha e Givanildo vai puxando pedestres na rua para conversas prosaicas sobre as vantagens do produto que o patrocinador do dia oferece.

“O povo não aguenta mais repórteres formais, que parecem que vieram de outro planeta. eu não. Eu sou povão”

Mas seu emprego no fundo é um eterno plantão. Delegados, policiais, advogados de defesa gostam dele, e, assim que qualquer ocorrência aparece, ele é o primeiro a saber. Basta seu telefone tocar, a qualquer hora, para que Givanildo vista a polo vermelha com o logo do Sem meias e caia na sua viatura – um Uno adesivado com o logotipo do programa – acompanhado de seu fiel escudeiro, o cameraman/motorista Ivanildo, ou o popular Motolinkk, como é conhecido por ruas e bares de Caruaru.

Mesmo quando a dupla dirige afoita, os acenos e gritos seguem o traçado do Uno. “Aê, Givanildo!” “Eiiita, Sem meias palavras!” Ele sempre devolve o gesto, saúda o cidadão e segue a labuta. Hoje, no caso, a bronca envolve três ladrões que tentaram roubar um comerciante pela segunda vez. O repórter é rápido. Cumprimenta pelo nome os PMs e em 2 min de prosa já entendeu como aconteceu o crime. Sem texto ou ensaio, cata o microfone e sai disparando a história de bate-pronto diante dos assaltantes, eles de costas para a câmera de Motolinkk. É aí que a mágica acontece.

A fama do programa não é o suficiente para explicar a estranha disposição que os recém-grampeados pela polícia têm em falar para o Sem meias palavras. O fato é que Givanildo tem algo raro entre repórteres policiais televisivos – naturalidade ao lidar com bandidos e demais imputáveis. Assim que chega perto dos algemados, olha no olho e com um breve muxoxo lamenta a condição dos rapazes. Com a câmera ligada e a voz mais comedida tenta uma confissão que não vem. Nem se abala e dá um conselho ou outro para os rapazes: “Você sabe que essa vida não tem futuro, não sabe?”. Os dois concordam e em poucos segundos já desabafam detalhes do roubo sem medo dos policiais que assistem a tudo.

Café com bode
É assim, com uma compaixão mezzo sincera, mezzo dissimulada, que Givanildo se tornou uma estrela local e querido entre polícia e bandidos. “Eu boto na TV gente perigosa. Perigosa MESMO, entende? E até hoje nunca fui ameaçado por ninguém. Porque eles sabem que eu não julgo ninguém e deixo eles falarem a versão deles”, dá seu álibi, a razão provável pela qual está ainda vivo aos 37 anos. Em 15 min na segunda delegacia regional ele já tem uma matéria para amanhã. Ou quase. Antes de seguir para o próximo DP nosso herói passa na sede da TV Jornal para editar pessoalmente um arquivo de áudio para uma chamada no programa de rádio do meio-dia. Enquanto isso, discorre sobre o porquê de tanta repercussão em torno de tão banais ocorrências. “Sabe o que é? O povo não aguenta mais aqueles repórteres formais, que parece que vieram de outro planeta. Eu não. Falo as coisas de um jeito que todo mundo entende. Eu sou povão!” Isso é.

Nosso café da manhã tem menu de almoço na famosa feira livre de Caruaru. Antes das 8h é bode assado, bode guisado, farinha e mandioca. Café, uma lapadinha de pinga e uma procissão de gente a nos cumprimentar. O que, para Givanildo, nunca é um porre. Andando pelos corredores da gigantesca feira, são crianças que o param, senhoras que cruzam seu caminho e estacam o passo para vê-lo passar, homens sob o efeito da Pitú que comentam as matérias do programa de ontem. Ou uma mãe que vem, toda agradecida, abraçá-lo. A mulher estava com lágrimas nos olhos ao lembrar dos conselhos que o repórter deu ao seu filho enquanto era preso no bairro do Salgado. Givanildo segura o abraço e diz à senhora que ela tem um bom menino, e que logo ele sai da cadeia.

Na mesma feira, em uma barraca de carnes, trabalha outra mãe, de outro sujeito que Givanildo entrevistou: Jeremias José. Provavelmente é o segmento que mais alçou o Sem meias palavras aos holofotes nacionais. Na verdade, foram duas as entrevistas, a primeira delas a mais célebre, em que, completamente torto de bêbado, Jeremias afirmou a Givanildo que se pudesse mataria até o delegado, que o cão foi quem botou pra ele beber. E que, nas anárquicas mãos do YouTube, acabou virando um funk genial que hoje é vendido em CDs de camelô e é hit de festas no Brasil todo.

Fomos juntos atrás de Jeremias, mas sua mãe informa que ele está na praia. Mas que, mesmo que estivesse em Caruaru, Jeremias não falaria com a Trip. Não gostou muito da extrema exposição de seus pileques. Até um processo ensaiou contra o Sem meias, incitado por alguém que o convenceu. O problema é que Jeremias havia assinado uma autorização de uso de imagem, mesmo caindo pelas tabelas de cachaça. Hoje, quando alguém na feira pede uma foto ao lado do pau-d’água celebridade, ele pede um pequeno cachê. Mesmo tendo, ele mesmo, recusado vultosas quantias para uma campanha publicitária e um convite ao programa do Ratinho anos atrás, aonde Givanildo haveria de ir junto.

Entrando em Cana
Apesar da fama e dos níveis imbatíveis de audiência, a vida de Givanildo ainda é humilde financeiramente. Não ganha muito mais do que R$ 3 mil por mês somando seus dois programas de rádio, o de TV e a insalubre rotina. Ele sabe que é pouco para cuidar da mulher, dois filhos pequenos e mais um do primeiro casamento. Mas não pensa em mudar de carreira nem tem lá muitas ambições em rede nacional. “Se eu fosse para São Paulo ia cair na mão de algum diretor, iam querer me controlar e eu perco o que tenho de bom. Aqui eu faço tudo do meu jeito, Caruaru é meu mundo.” Fato, é mesmo. E é a sensação de se sentir rei no seu mundo que segura Givanildo feliz em uma rotina de três horas de sono diárias e um pagamento modesto.“Sempre quis ser conhecido, ter o carinho do povo. Hoje está demais, porque não tenho sossego dos fãs. Mas vou reclamar? Isso é sinal de que faço um bom trabalho.”

A tal autoproclamada qualidade pode parecer discutível aos olhos mais críticos – ou cínicos – do Sudeste ou Sul do Brasil. Mas quem vê Givanildo como uma boa piada trash erra feio. Falando de assassinatos ou bêbados presos fazendo arruaça em Caruaru, Givanildo dá um jeito de manter alguma estranha leveza, um humor sem crueldade na hora de reportar o mundo cão. Esse estranho carisma parece ser a alma do negócio do Sem meias. Quem concorda é Edeilson Lins, o âncora do programa. “O Datena é equivocado. O apresentador fica gritando, tratando gente presa como animais e o repórter tem aquela pose de super-herói. Isso não pega bem, estamos no século 21”, elabora com uma anacrônica voz de locutor. “Aqui não. A gente sabe que essas coisas acontecem, e que todo mundo erra. E o povo, no fundo, sabe disso.” Principalmente em Caruaru.

“Se eu fosse para São Paulo ia cair na mão de um diretor e perderia tudo o que tenho de bom. Caruaru é o meu mundo”

A cidade, e muito de sua força trabalhadora, parece movida a álcool em curtas e frequentes pausas durante o dia. Não deu meio-dia, e o repórter que vos tecla já está, de novo, meio torto de cachaça. Tanto que, ao acompanhar Givanildo em uma ocorrência no DP, tropeço aos soluços na entrada e provoco risos entre algemados e fardados. “Esse aqui veio de SP, mas toma cana!”, me apresenta Givanildo, e é nítida a calorosa recepção dos homens da lei. Beber, de fato, é um sinal de confiança, de caráter.

Um ser da comunidade
Na delegacia há um clima peculiar, em que presos, testemunhas, advogados, mães, PMs e a imprensa tratam-se com uma inesperada cortesia. Como se o crime e a contravenção fossem parte da rotina, sem um peso moral, sem a carga solene e assustadora das delegacias dos telejornais em rede nacional. No xadrez, menores de idade encarcerados por vender crack no centro da cidade. Eles choram e fazem piada com a TV, pedem comida aos PMs, que respondem com um não piedoso. PMs que sabem da impossibilidade de manter gente presa de fato. E Givanildo é o melhor, e quase único, a reportar esse mundo em fogo brando.

Entrevista os menores e, como sempre, tenta dissuadi-los dessa vida. “Imagina a sua mãe, menino. faz isso não. Crack não leva a nada.” Diante do rosto célebre, os garotos concordam e derrubam meia dúzia de lágrimas. Fim da gravação e seguimos de volta para a viatura, dessa vez acompanhados por Jorge Dário, um advogado de defesa, e Adeilson, um outro repórter de rádio, ambos amigos de Givanildo. Enquanto outra ocorrência não vem, o jeito é aguardar com aguardente.

O dia cai e o álcool sobe alto. Já foram cinco botecos, um forró quente nos fundos de um motel onde damas faziam fila para dançar com Givanildo e seus amigos. Já passamos voando de carro pela cracolândia de Caruaru, demos rasantes em raparigueiros e aterrissamos em um terreiro de candomblé em um sábado dedicado a Exu na forma de pombagira. No banco de trás, uma clareza ébria me domina. Caruaru tem vocação para um harmônico caos, um realismo bêbado, extremamente lúcido, como se todos soubessem, e aceitassem, que a lei e a ordem são tolas utopias. Como se o álcool fosse a forma de se manter sóbrio em um mundo trançando as pernas. Nos carros que cruzavam nosso caminho, motoristas segurando latas de Pitu, motoqueiros sem capacete empinando e viaturas de polícia rindo dos doidos no trânsito e todos dando tchaus a nosso carro.

“Sabe o que eu mais quero, Bruno?”, começa Givanildo. “Antes de ser jornalista quero ser um ser da comunidade. Dou duro, trabalho demais. Mas tudo pra, um dia, ser reconhecido que tenho um papel importante. Que é mostrar pra todo mundo como as coisas são de verdade. Sem blablablá, entende?” Sua voz engasga, como se lágrimas estivessem prontas para cair. Eu só posso dar tapinhas em seu ombro. E Jorge Dário, seu advogado ao volante, varando um sinal vermelho a caminho do bairro do Salgado, é quem, sem meias palavras, melhor responde: “Givanildo. Você quer ser o que você já é”.

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