por Doutor Ailton
Trip #181

O Boombox ainda vive. Descubra por que esses velhos aparelhos são a cara da desaceleração

“Mano, o que você tá fazendo com esse rádio na mão?” Antes que eu pudesse responder, os dois malucos que me abordaram já tinham emendado mais três perguntas e arremataram com um eufórico “cara, a gente tava pensando em te roubar”. Caímos na risada. O motivo que deixou os dois alucinados custou-me alguns poucos reais e eu nem sabia se funcionava ou não. Rico, 36 rádios e 25 anos, e Foley, 24 rádios e 25 anos, técnico de laboratório e barista, bateram os olhos e sacaram que aquele era um Polivox RG 700 vermelho, peça rara. Conferi e, para minha surpresa, era isso mesmo. Os dois são b.boys desde 1998, e esse radião toca-fitas, também conhecido como boombox, é um sonho – e instrumento de trabalho – de qualquer b.boy.

O boombox viveu seus dias de glórias no fim dos anos 70 e boa parte dos 80. Enquanto surgia o walkman, celebrando a música portátil individual, o boombox era a festa da portabilidade, símbolo da confraternização, das rodas de dança e parte do conceito de cultura de rua. Remete ao início das crews de b.boys e da expansão do break. Décadas antes dos minúsculos iPods e afins.

Campeão de ioiô
Mais ou menos do mesmo jeito que chegou em mim, ano passado Rico quis conhecer quem era o cara que andava na rua com um National RX 5400. Era Danilo, 54 rádios e 24 anos, morador de Santo André, grafiteiro e dono de uma loja especializada em materiais de grafite. Frequentador de batalhas de b.boys, também conhecido como Danone, Danilo sentia falta de ver as pessoas dançando. Providenciou alguns rádios e passou a pintar muros e a andar pelas ruas e pelas festas sempre carregando a própria música. Não se separava mais dos rádios. A cada dia saía com um modelo diferente. Imortalizou seu primeiro radio, o National que atraiu o olhar de Rico, num estêncil que espalha nos muros por aí.

Num sábado de festa se arrumou, pegou sua gatinha e seu rádio mais estiloso e saiu se sentindo o cara que chacoalha a multidão, bem no estilo que LL Cool Jay bradava em 1985 no hino “I Cant’t Live Without My Radio” – música que abre o LP Radio, que traz na capa um close de um JVC. Foi a cena que bastou pra Danilo cair na abordagem de Rico, que pediu pra ver o rádio, já querendo comprar. Resposta: “Me vende os seus”. Acabaram ficando amigos e decidiram formar um clube de apreciadores do boombox. Lembraram de outros parceiros que tinham radiões e daí pra montar a crew foi um pulo.

Um dos convocados foi Roney Yo-Yo, 25 rádios e 42 anos, campeão mundial de ioiô em 1985. Sua coleção ganhou corpo na época em que teve loja no centro. Vinham de rolos de clientes que apareciam pra trocar aparelhos por tecidos. Roney fez parte da primeira geração que dançava na São Bento e participou como MC em uma faixa do primeiro disco de rap brasileiro, Cultura de Rua. Com um currículo desses, não podia ficar de fora de um clube de boombox.

O b.boy Erô, 14 rádios e 22 anos, irmão de Foley, também se empolgou. Trabalha numa farmácia de manipulação e começou a dançar na mesma época do irmão, cerca de dez anos atrás.

Fechando o clube, Mr. Fe, 12 rádios e 31 anos. É outro mano de longa data do hip hop, há quase 20 anos mandando manobras de chão elaboradas, garantindo troféus de b.boy campeão.

Com o time fechado, uma quantidade generosa de rádios e a vontade de se encontrar, Rico, Danone, Foley, Roney Yo-Yo, Mr. Fe e Erô fundaram a B. Box Original, pra se dedicar ao garimpo de rádios que marcaram época e também para colocar o boombox em seu devido lugar como elemento da cultura hip hop.

Pilha de pilhas
Depois que montaram a crew, a quantidade de rádios aumentou consideravelmente. Todo mundo fica na pilha para novas aquisições. Já acharam rádios nos lugares mais improváveis, empoeirados em oficinas eletrônicas e brechós, engordurados em botecos e pizzarias, sujos em mecânicas e até limpos em salas de casas – nesse caso, são aparelhos que viram perto de alguma janela e tocaram a campainha para negociar.

Também contribuiu bastante pra aumentar a coleção a libertação das pilhas. Antes qualquer rolê tinha que ter vaquinha pra comprar pilha. Tem aparelho que chega a consumir dez alcalinas grandes rapidinho. Em época de vacas magras, a solução era usar os rádios menores ou improvisar gatos. Isso só acabou recentemente, graças à descoberta de uma bateria de nobreak que pode ser recarregada e, adaptada, abastece um rádio por até oito horas.

A outra dificuldade é a do batismo. Todo rádio novo “precisa” passar pelo batismo de rua, e pra isso, claro, tem que funcionar. Como os rádios são comprados no (mau) estado em que se encontram, tem que achar um técnico que resolva, fora o garimpo de peças de reposição. Vale até contatar fabricante gringo, mas muitas dessas marcas não existem mais, outras deixaram de produzir os modelos e algumas nem devem saber que algum dia já fabricaram aquilo. Aí vale a lei do improviso. Ninguém é técnico eletrônico, mas o povo abre os rádios, ressolda fios, improvisa peças e bota pra funcionar. “Fazemos umas adaptações que só a gente tá ligado. Quem é leigo pensa que é original”, diz Danone.

Paredão de 140 rádios
Como o lance deles é consertar e levar esses rádios às ruas para viver momentos felizes, o convite de Trip para reunir todos os rádios (nada menos que 140), empilhá-los e fazer um paredão deixou a galera feliz. As fotos seriam num sábado de manhã. Danone construiu a estrutura, rolos de plástico bolha embalaram todos os rádios e sete da manhã estava todo mundo pronto na praça Princesa Isabel, no centro. Mais uma hora pra empilhar tudo, som na caixa e todo mundo dançando. Rolou até desafio: os rádios dele x os meus. Batalha de boomboxes.

Apesar de cultuarem um ícone dos anos 80, o som que sai dos boxes em sua maioria não vem de fitas, e sim de MP3, via iPod e celular, conectados na entrada auxiliar dos aparelhos. O celular do Rico, por exemplo, que descarregou bastante funk, interrompia a festa toda vez que ele recebia uma ligação. O grafiteiro é o único da turma que ainda grava fitas e leva quando vai pintar um muro.

Rico resume o espírito da coisa: “Fazer o que a gente faz não é para qualquer um. Pra sair com um daqueles, um rádio que pesa 14 kg, e ainda pegar ônibus com o bagulho ligado, bateria e fio dentro da mochila. mano, tem que amar, tem que curtir”.

Na sessão de fotos, sol escaldante na cabeça, me lembrei do porquê fui comprar o boombox que foi cobiçado – é o quarto que consegui, pra juntar com outras raridades que tenho em casa. Normalmente desmonto, ligo iPod, coloco cor, presenteio minha namorada. Minha relação é a inversa da deles: não sou eu que procuro o boombox, é o boombox que me procura. Quando sou chamado para fotos e gravações publicitárias e até mesmo no teatro, muitas vezes jogam o rádio no meu ombro.

Fiquei pensando nisso, olhando o paredão. Era o Polivox sobre o Sanyo, sobre o Lassonic, Sharp, Sony e mais tantas outras marcas e modelos, um muro de 2,50 m por 4,50 m. Parei em dois ou três modelos que mais mexeram comigo e pensei que era minha vez de falar “cara, tava pensando em te roubar”, jogar um daqueles nos ombros e sair correndo.

* Colaborou Andréa De Marco

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