Verão na Faixa de Gaza
“O que um judeu quer fazer em Gaza? Eles vão te matar.”
O soldado israelense abriu meu passaporte e olhou incrédulo. “O que um judeu quer fazer em Gaza? Eles vão te matar.” Decidi que, se a coisa ficasse preta, eu poderia contar com a proteção do meu passaporte brasileiro
No verão de 1996, fui convidado pela Movimondo, uma ONG italiana, para dirigir um documentário sobre suas atividades humanitárias. Eles me deram carta branca para filmar em qualquer um dos muitos países onde operavam. Quando olhei para a lista de lugares, um nome me saltou aos olhos: Faixa de Gaza! Para um judeu como eu, Faixa de Gaza é um nome que evoca medo, violência, extremismo religioso e ódio. Cresci ouvindo falar de como nas escolas de lá as crianças são educadas para nos odiar, para se tornarem terroristas. Cresci sentindo culpa e horror cada vez que via na televisão essas mesmas crianças sofrendo na pele as consequências de um conflito do qual, bem de longe, faço parte, mesmo acreditando que o sangue palestino vale tanto quanto o sangue judeu. Com essa confusão na cabeça, não hesitei e fui para Gaza.
Um pequeno parêntese: desde 1994 Gaza era governada pela Autoridade Palestina, chefiada por Yasser Arafat. No ano anterior, israelenses e palestinos assinaram o Acordo de Paz de Oslo. A comunidade internacional estava investindo em diversos projetos de desenvolvimento em Gaza. Os mais ufanistas diziam que em poucos anos Gaza seria a Hong Kong do Oriente Médio. Um caminho para a soberania palestina estava sendo construído. Em 1995, quando o ex-primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin foi assassinado por um judeu extremista – precisamente por ter assinado o Acordo de Oslo –, Arafat foi ao apartamento da viúva de Rabin em Telaviv para levar suas condolências. Diz o ex-presidente americano Bill Clinton que os dois homens eram amigos de verdade. Enfim, não havia ainda uma paz sólida, mas vivia-se um raro momento de tranquilidade.
O soldado israelense no posto fronteiriço de Erez abriu meu passaporte e olhou para mim, incrédulo e arrogante. “O que um judeu quer fazer em Gaza? Eles vão te sequestrar, te matar, te esquartejar”, disse. Não dei ouvido, mas senti muito medo. Goldman, meu sobrenome, me condenaria enquanto judeu – na Segunda Guerra Mundial, me levaria diretamente para uma câmara de gás. Mas, em Gaza, decidi que se a coisa ficasse preta eu poderia contar com a proteção do passaporte brasileiro. Tinha comigo seis camisetas da seleção para dar de presente para os meus futuros sequestradores. Na hora que fossem me matar, eu ia gritar: “Sou brasileiro, tetracampeão! Viva o Bebeto, Dunga e Taffarel!”. Com certeza, seria poupado.
Fui recebido na associação dos paraplégicos com enorme carinho. Ninguém se interessou em perguntar meu sobrenome. Me levaram para passear em “antros do inimigo”: os famigerados campos de refugiados de Khan Yunis, Jabalia e Rafah – todos muito pobres, mas, naquela época, muito menos miseráveis do que o Complexo do Alemão ou Paraisópolis. Me senti estranhamente em casa. Muitos falavam um pouco de inglês e o tempo todo era tratado com sorrisos e gentilezas. Cada refeição era um banquete e eu, em absoluto, não podia pagar nada. Aprendi que não existe hospitalidade como a que se encontra no mundo muçulmano. Bem receber hóspedes é um preceito sagrado do Alcorão.
GUERRA E PAZ
Meus anfitriões foram tão afetuosos que eu comecei a sentir culpa por esconder minha verdadeira identidade. Um dia na praia, depois de uma semana de convivência, resolvi contar para o pessoal que, sim, eu era brasileiro, mas era também judeu. Fiz bar-mitzvá, estudei hebraico e frequentei um grupo sionista de esquerda. Tinha visitado meus familiares em Israel várias vezes e passei um mês trabalhando num kibutz na Galileia. Ninguém pareceu surpreso ou incomodado com a revelação. Muitos começaram a falar comigo em hebraico. Falamos de guerra e paz, fizemos um campeonato de pingue-pongue e até paquerei uma cadeirante linda chamada Samira. Rolou só a meiguice de um inesquecível beijo no rosto...
É uma memória que, diante do trágico presente, parece absurda. O Acordo de Oslo fracassou. A maioria dos judeus culpa os árabes pelas desgraças. A maioria dos árabes culpa os judeus pelas desgraças. A maioria dos que não são judeus nem árabes julga a questão a partir dos próprios preconceitos e ignorâncias. Neste mar de ódio e recriminação, cabe a cada um matar quanto pode. Mas não podemos esquecer: lá estávamos no verão de 1996, prestes a ter uma história completamente diferente para contar.
*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles