Super-normal
O Rivotril é a droga com a cara dos dias de hoje, em que temos sempre que estar bem
O Rivotril é a droga com a cara dos dias de hoje, em que todos temos que estar bem o tempo todo. Segundo remédio mais vendido do Brasil, na frente do Tylenol e do Hypoglós, o ansiolítico tarja preta virou moda e atraiu usuários famosos como Selton Mello, Pedro Bial e Zeca Pagodinho
Sim, você já deve ter ouvido falar do Rivotril. Você já deve até conhecer aquela piada, que de tão batida já perdeu a graça, que diz: “Ri melhor quem Rivotril”. Você já deve ter escutado alguém falar que toma o remédio. E também já deve ter lido em algum site de fofocas o nome da droga associado a alguma celebridade. O Rivotril, um ansiolítico indicado para transtornos de ansiedade, bipolaridade e alguns casos de depressão, é, segundo o psiquiatra Alexandre Saadeh, do Hospital das Clínicas, o remédio da moda. E é fácil perceber isso. Os números mostram. E o hype em cima do medicamento também. O quê? Você acha que remédio não é tendência? Mas claro que é! O fenômeno Rivotril prova isso.
O medicamento, de tão badalado, já foi parar até nos palcos. Ao receber ano passado um prêmio de melhor artista do ano, o ator Selton Mello declarou, diante de um auditório lotado: “Gostaria de agradecer a todos os presentes, à indústria farmacológica e de psicanálise e ao Pramil e ao Rivotril, que fazem a gente ficar assim, bem”. Mais do que cair no clichê de agradecer aos familiares, Selton agradeceu a uma outra espécie de mãe de muitos brasileiros. Em 2008, foram vendidas nas farmácias do país 14 milhões de caixinhas do ansiolítico, que parece servir para quase tudo, de uma tristezazinha a uma noite sem sono. O mais absurdo: o Rivotril é um remédio tarja preta, vendido com aquela receita azul, controlado. O motivo é simples e assustador. Ele causa dependência química, assim como a cocaína e a heroína.
Se você está chocado, não fique. Tudo bem, pode ser que você nunca tenha tomado um Rivotril para domir, segurar um ataque de ansiedade, pegar um avião ou amortecer um pé na bunda. Mas tenha certeza de uma coisa: o colega que senta do seu lado no trabalho já tomou. Ou a sua namorada. Ou vai dizer que a sua mãe não tem uma caixinha na mesa de cabeceira? O remédio está perto de você simplesmente por uma questão matemática. Ele é o segundo medicamento mais vendido no Brasil, só perde para o anticoncepcional Microvlar. E ganha de comprimidos que a gente encontra ao alcance da mão, nas prateleiras das drogarias, como o Tylenol e a Aspirina.
Além de vender muito, o Rivo é cult. Existe banda chamada Rivotril, programas de rádio, blogs, e o remédio tem mais de 900 fãs no Facebook (a comunidade virtual do momento). No mundo dos famosos, bem, Selton não está sozinho nessas. Pedro Bial é outro que contou em uma entrevista à Playboy fazer uso do Rivo (o apelido carinhoso adotado pelos usuários da droga) antes de fazer seus discursos ao vivo no Big Brother. O cantor Zeca Pagodinho também afirmou, em entrevista concedida à Tpm ano passado, que quando está melancólico toma Rivotril.
Gotinhas o dia todo
Mas por que tomamos tanto Rivotril? A editora de moda Erika Palomino, que anda com um frasco do remédio em gotas na bolsa, arrisca alguns palpites. “A vida é muito difícil. Eu sou muito guerreira, trabalho muito e sou perfeccionista. E tem horas em que realmente não dá. É tanta pressão que você sofre que precisa de um cobertorzinho, como se fosse aquela fraldinha a que o bebê dorme agarrado, às vezes você precisa de um conforto.” Erika se esforça para tomar o remédio o mínimo possível. “Sei que vicia e que eu sou compulsiva. Então, meu principal cuidado é esse, não cair nessa de tomar todo dia.” Mas, quando toma, a editora não se culpa. “Sou a favor das drogas lícitas, as que a gente compra na farmácia. E quando tomo é porque sei que preciso. Tem vezes que você não consegue dormir de jeito nenhum de tanta ansiedade, mas no dia seguinte tem que acordar para uma reunião em que terá de estar linda e inteligente. A vida às vezes é dura”, diz a editora, que se trata com um psiquiatra.
A escritora Adriana Falcão é outra que anda sempre com o seu Rivotril por perto. E que também sofre de ansiedade. Ao contrário de Erika, ela prefere os comprimidos. “Não acredito em gotas, acabo achando que é tipo um floral e vou tomando várias gotinhas o dia inteiro achando que não tá fazendo efeito”, diz a escritora, famosa, entre outras coisas, por saber rir de si mesma o tempo inteiro.
“Na primeira vez que tomei Rivotril fiquei até assustada. Eu estava com um início de depressão pós-parto, completamente fóbica, não conseguia sair de casa nem para tirar os pontos da cirurgia. Meu médico me mandou tomar metade de um Rivotril. Eu ainda fiquei desconfiando dele, pensando, “ah, tá, imagina se isso vai fazer efeito”. Mas aconteceu um milagre: eu morava em Salvador. O táxi foi passando pela orla e eu fui vendo tudo ficar lindo, maravilhoso.
Hoje, depressão curada. Adriana recorre ao Rivotril para se sentir “adequada ao mundo”. “Não tem gente que de vez em quando precisa encher a cara? Então, é a mesma coisa.” A escritora é ansiosa diagnosticada e acha que o mundo anda, mesmo, muito complicado. “A gente tem medo de muita coisa, de ser julgada, de ter acontecido alguma coisa com a filha que não chegou da balada, de não ser aceita, de ter que estar sempre bem.”
A mãe da escritora, também ansiosa, morreu por tomar medicamentos demais. “Entendo muito de calmante porque a minha mãe tomava todos. Antes era uma coisa meio chique tomar um Valium. Agora, nunca vi um tão popular quanto o Rivotril. A minha empregada toma, de vez em quando pergunta: “Adriana, você tem um Rivotril para me arrumar?”.
O remédio é mesmo popular. Um dos motivos é o preço. Um frasco ou uma caixa com 20 comprimidos custa cerca de R$ 10, enquanto antidepressivos de ponta podem custar até R$ 300. O Rivotril é vendido em gotas e em comprimidos, que variam de 0,50 mg a 2 mg. Existe também uma versão sublingual, de 0,25 mg, indicada para ataques de pânico ou ansiedade.
“O Rivotril é barato porque é um medicamento antigo. Começou sendo usado como antiepilético e depois as outras funções foram sendo descobertas. Quanto mais tempo um medicamento está no mercado, mais barato ele fica”, diz Saadeh, que acha que a popularidade do Rivotril tem os dias contados. “O Lexotan já esteve muito na moda. E daqui a pouco a indústria lança outro medicamento que desbanca o Rivotril”, diz o médico, que acredita que o consumo exagerado do medicamento acontece por causa da tal obrigação de ser feliz, tão comum aos nossos tempos. “As pessoas acham que precisam ter tudo. O novo iPad, a nova roupa de grife, precisam ser descoladas, conhecer o novo DJ e também precisam ser felizes. A felicidade entra nesse pacote de obrigações.”
O relações públicas Renato Rossoni é um que está sempre ligado em tudo. “Sou assim desde criança.” Consequência: não consegue dormir e por isso apela (e como) para os remédios. “Nunca fui a um psiquiatra e nunca tomei remédio com prescrição médica.” Mesmo assim, Rossoni consegue todos os tarjas pretas que quer. “Existem umas farmácias que vendem sem receita. Chego e compro Rivotril, Frontal [um outro ansiolítico], Stilnox [hipnótico indicado para insônia e ansiedade severas]... Compro para mim e também para amigos.”
Rossoni começou tomando meio Rivotril para dormir. Mas levou um susto quando percebeu que só conseguia dormir depois de tomar dois de 2 mg (uma dose muito alta, que equivale a oito comprimidos da versão de 0,50 do remédio). O remédio, segundo Saadeh, causa tolerância. “Quanto mais você toma, mais precisa de uma dosagem mais alta para ter o efeito.” Rossoni decidiu resolver o problema sozinho. “Aí eu segui a dica de um amigo e troquei de remédio. Passei a tomar Frontal.” A troca foi feita sem supervisão médica. Hoje, ele alterna entre os dois medicamentos e também toma um Stilnox de vez em quando.
“Acho que o mundo sem drogas não existiria, ou pelo menos a gente não existiria”, ele ri. O relações públicas convive em um meio onde falar que toma um desses remédios não é tabu. “Todo mundo toma. E por quê? Estou sempre pensando no ontem, no hoje e no amanhã, tudo ao mesmo tempo.”
Vale lembrar de novo. O Rivotril é indicado por psiquiatras para, por exemplo, síndrome do pânico, mas, como está escrito na bula, ele deve ser tomado sob prescrição médica (de um doutor de confiança) porque o abuso desse remédio pode gerar dependência.
O publicitário Ricardo (nome fictício) que o diga. “Quando eu tinha 20 e poucos anos, fui diagnosticado com ansiedade e depressão. Um médico me receitou doses altíssimas de Rivotril. Hoje, acho que ele me viciou para que eu voltasse sempre para pegar o remédio e pagar a consulta, que era cara.” Ricardo conta que tomava sempre comprimidos de 2 mg (a dosagem mais forte). “Eu pedia para ele me dar comprimidos de 0,50 e ele se recusava, dizia que não ia adiantar.” Um dia Ricardo cansou e decidiu parar de tomar o remédio. Sozinho. “Fiquei trancado no meu quarto por duas semanas tremendo. Parecia que eu tava tomando um choque elétrico. Fui parar duas vezes no pronto socorro, passando mal. Larguei e curei a dependência química. Mas sobrou a psicológica, que curei com terapia. Hoje Ricardo ainda usa o remédio, esporadicamente. “Tomo muito raramente, mas é só um e pronto. Depois vou fazer ginástica e outras coisas.” E como ele consegue o remédio se não vai mais ao psiquiatra?. “Meus amigos me dão. Sempre tem alguém com um sobrando. E, em último caso, apelo para uma amiga que compra de um traficante que vende no Orkut.”
Sim, nas inúmeras comunidades que existem no Orkut dedicadas ao remédio, há vários usuários oferecendo venda do remédio. É só trocar uns e-mails para combinar o pagamento e a entrega.
Mesmo quem toma vê problemas no abuso. “Tomo de vez em quando, de forma recreativa, em casa de amigos. Se aparece, eu falo “ah, me dá umas gotas”, é como fumar um baseado”, diz o videomaker Felipe Dallanese, que, no entanto, evita tomar o remédio quando está mal. “As pessoas acham que a vida é uma montanha-russa só com subida. Não concordo. Hoje sei que você tem que ficar mal também. E conseguir as coisas pelo esforço, não por milagre.”
A metáfora da montanha-russa combina com a teoria do especialista Alexandre Saadeh. “O ser humano nunca gostou de sofrer, nunca gostou de sentir dor. Agora, parece que gostamos disso menos ainda, principalmente porque temos mais aparatos para evitar a dor.”
Faz sentido. Mas vale lembrar, de novo, tem gente que precisa tomar Rivotril. “Quando bem receitado ele é um remédio ótimo”, diz o psiquiatra. O difícil mesmo é ele ser bem receitado. Ou, pelo jeito, ser comprado com receita de um médico que acompanhe o seu histórico. E não pelo Orkut.