Steve Jobs, o pai dos piratas
Steve Jobs aprendeu sobre eletrônica abrindo aparelhos e hoje só fabrica produtos fechados
Em 1971, um maluco descobriu que um apito que vinha como brinde na caixa do cereal Cap`n`Crunch, vendido nos EUA, emitia um assovio exatamente na frequência que a AT&T, operadora de boa parte da telefonia à época, usava para dar acesso técnico à sua rede. Em outras palavras, quando alguém usava o apito no telefone, a rede entendia que se tratava de um operador e liberava o aparelho para chamadas gratuitas. Surgiu aí o movimento de phreaking, mistura de phone com freak (maluco), precursor direto da primeira geração de hackers californianos. Dentre eles, um jovem chamado Steven Paul Jobs, ou simplesmente Steve Jobs, que alguns anos depois veio a fundar a Apple.
Quando Jobs e seu colega Steve Wozniak leram um artigo na revista Esquire detalhando o phreaking, ficaram impressionados. Ambos, já embrenhados no universo da eletrônica, resolveram substituir o rudimentar apito "mágico" por um dispositivo eletrônico fabricado por eles mesmos, que acabou ficando conhecido como "Blue Box" (caixa azul).
A caixa permitia fazer ligações gratuitas e manipular os troncos da rede telefônica. Usando a caixa, Wozniak chegou a ligar para o Vaticano dizendo que era Henry Kissinger e querendo falar com o papa (que só não atendeu porque estava dormindo). Por cerca de um ano, Jobs e Wozniak ganharam dinheiro fabricando e vendendo as caixas azuis.
Duas coisas chamam a atenção nessa história. Tanto Jobs quanto Wozniak aprenderam sobre eletrônica abrindo, entendendo e manipulando computadores e sistemas de outras empresas (incluindo aí a AT&T). Em outras palavras, eles se beneficiaram enormemente do ambiente de "abertura" da sua época, em que predominavam a colaboração e a curiosidade.
AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ
É interessante ver como tudo isso mudou hoje, quando os produtos da Apple são rigorosamente fechados, tanto do ponto de vista físico (não dá para abri-los nem para trocar a bateria!) quanto de software. Nesse sentido, a Apple impediu recentemente o Google de vender seu aplicativo Google Phone no iPhone, justamente porque ele competia com a rede da AT&T, hoje parceira da Apple nos EUA. O mundo dá voltas.
O segundo ponto é o papel do jornalismo na cobertura de tecnologia. Grande parte das reportagens trata a tecnologia essencialmente como objeto de consumo. Esquece que sistemas técnicos trazem embutidas questões políticas (como "abertura" ou "fechamento"). Com isso, dão a impressão de que a tecnologia é algo distante, quase imutável. Um artigo como o da Esquire, que influenciou Steve Jobs, pode hoje inclusive trazer repercussões legais. Foi o que aconteceu com o professor Edward Felten, de Princeton, quando publicou um estudo que mostrava como quebrar uma proteção anticópia da indústria fonográfica ou quando a empresa Diebold, que fabrica urnas eletrônicas, processou diversos sites especializados que descobriram e publicaram como o seu sistema poderia ser fraudado.
O bom jornalismo de tecnologia precisa considerar todas as suas dimensões sociais: políticas, econômicas e científicas. Para que isso aconteça, precisa ser feito sem medo de represálias e sem meias palavras. Tanto os princípios democráticos quanto os Steve Jobs do futuro agradecem.
Ronaldo Lemos, 33, é diretor do Centro de Tecnologia da FGV-RJ e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu e-mail é rlemos@trip.com.br