Silvio Santos vem aí
Nosso repórter excepcional monta a barraca em frente ao salão do coiffeur do apresentador
Em protesto contra as constantes recusas de Silvio Santos a dar entrevistas, nosso repórter excepcional monta sua barraca na praça em frente ao salão do famoso coiffeur do apresentador. Objetivo: arrancar algumas pílulas de sabedoria da lenda viva da TV
Assisto pasmo ao sísmico 2011. Manifestações populares, concentrações, insurreições, ocupações e muita indignação. O leitor atento acompanhou os desdobramentos dos protestos da primavera árabe, a mobilização na Espanha e o movimento Occupy Wall Street. Em São Paulo, os sem-teto ocuparam uma série de edifícios e na USP explodiu um bafafá sem precedentes. Desemprego, corrupção, sistema de saúde obsoleto, ganância, violência estatal, serviços moribundos, ortodoxia islâmica, sistema financeiro corroído reverberam na psiquê do Homo sapiens. Todo mundo que tem uma causa está levantando a voz e se manifestando.
Inspirado por esses levantes, resolvi tornar pública uma causa que há muito assolava a Trip: entrevistar Silvio Santos. Inflamado, inconformado, tornei-me um porta-voz para declarar nossa indignação diante das inúmeras negativas. Marchei ao salão do coiffeur que há décadas cuida, com muito esmero, da juba de Silvio Santos. Decidi ocupar o Jassa.
Inspirados nos detetives Olho Vivo e Faro Fino, investigamos detalhadamente os possíveis movimentos de SS. Qual seria o dia em que ele iria ao Jassa? Segundo uma fonte incontestável, Silvio tem há séculos o hábito de ir ao Jassa pela manhã para lapidar seu penteado nos dias em que grava seus programas. Como sabíamos que na quarta-feira haveria gravação, montamos nosso bunker em praça pública, na calada da noite.
Nossa barraca se destacava ao lado de uma banca de jornal na avenida Faria Lima, colada com a Cidade Jardim, duas artérias vitais da cidade de São Paulo. A produção na noite fria dava o tom da ocupação zen. Fogareiro para fazer chá de darjelling orgânico (um capricho que não passo sem), touca de vicunha boliviana (necessidade capilar), manto sagrado do Himalaia bordado por monges cegos (um must have de meu closet) e uma felpuda máscara para dormir, souvenir de uma viagem de primeira classe para Dubai.
Rebobinava algumas lembranças de passagens da minha vida em que estivera acampado. Festival de Iacanga, Maromba, Trancoso e as paleolíticas festas do Rajneesh na Califórnia. Período mesozoico deste ancestral homem de Java. Sempre odiei acampar.
Mesmo assim, relaxei. Minha causa é maior que o desconforto. Tanto que caí nos braços de Morfeu, em meio ao zum-zum-zum de carros, sirenes e ônibus, e sonhei como um cataléptico inebriado.
Estava frente a frente com Silvio Santos, e ele me indicava para abrir a “porta da esperança”. Seus bordões ricocheteavam nessa aventura pelo umbral do desconhecido. O primeiro foi o sonoro grito de “Róóquei!” Suas risadas e seus haikais conduziam minha trip. “Vem pra cá, vem pra cá. É solteiro, casado ou tico-tico no fubá? Quem quer dinheiro? Qual sua caravana?”
Acordei de sopetão. Passara um par de horas delirando com esse encontro inusitado com Silvio Santos. Estava embriagado com a fleuma poética do Merlin do Baú da Felicidade. Minha mente sapecava com a possibilidade do contato imediato de primeiro grau com Silvio. Missão impossível?
Às 5h15 da matina, como por encanto, desfilando pelo canteiro de cimento da avenida Faria Lima, surge o primeiro simpatizante da nossa causa, o florista Vic Meirelles. Abraçado a um vaso de arruda, deslizando de pantufas, cobertor da vovó e travesseiro de plumas, Vic transbordava alto astral. Sua solidariedade é contagiante. Ocupa Jassa é nosso lema.
O sol nasce, e meu dia se ilumina com a presença de Prem Baba, o guru do amor. Pergunto a ele sobre as manifestações recentes no mundo árabe, na Europa e nos Estados Unidos. Qual seria o melhor remédio diante de tamanho mal-estar da civilização? Qual o desejo oculto por trás dessa metafísica Porta da Esperança? Prem Baba avisa ser impossível conter esse impulso de rebeldia popular. Seu conselho é voltar-se para dentro buscando a paz e a verdade dentro de si mesmo, através da meditação, da oração e da comunhão com o plano espiritual. No dia de seu aniversário, com uma agenda repleta de compromissos e comemorações, Prem Baba encontrou tempo para me presentear com palavras de força e solidariedade à nossa causa. Ocupa Jassa.
O tempo passava e nada de Silvio. Mas, de repente, como um avatar de si mesmo, vejo o apresentador estacionar seu bólido na porta do Jassa e descer solenemente. Deu um aceno para nossa equipe e penetrou a passos largos no interior do salão. Silvio percebeu nossa intenção e desbaratinou. Ele é capaz de dar nó em pingo de éter usando luvas de boxe. Estávamos prestes a ficar face a face com Silvio Santos, e não deixaria escapar de nenhuma maneira essa oportunidade. E, então, fomos surpreendidos pelo sorriso maroto do apresentador Otávio Mesquita. Velho conhecido, Otávio também tinha hora marcada com o Jassa. Comovido com nossa empreitada, ele promete intervir diretamente com Silvio. Otávio está com o Ocupa Jassa!
Baú da felicidade
Após 40 minutos, eis que surge Silvio Santos. Educado e atencioso, SS emite a primeira frase: “Oi, oi, mas que recepção. Pode falar, meu filho, o que você deseja?”. Dançando e rodando, solto o verbo: “Desculpe perturbá-lo, mas nós representamos a revista Trip, que está fazendo 25 anos. Trouxe este livro de presente para você”. Entrego a ele o calhamaço Karma pop, sobre as minhas aventuras pela Índia. Silvio exclama: “Muito obrigado! Você é muito gentil”. Eu emendo: “Silvio, fui seu funcionário por três anos”. Rápido e desconcertante, ele me dá um corte e complementa: “OK, muito bom”. Insisto que gostaríamos de saber sua opinião sobre as ocupações e os protestos ao redor do mundo. Silvio dá um salto triplo e desce em um parafuso mental: “A única coisa que posso dizer a vocês é que no próximo domingo nós faremos uma liquidação na avenida Ataliba Leonel. Uma megaliquidação dos produtos que sobraram do Baú da Felicidade”.
Silvio é um Houdini com as palavras. Esconde minha pergunta e responde com um discurso do virtuoso camelô. “Oi, oi, oi, esses produtos serão vendidos por preços inferiores aos de fábrica. Quem quiser ir neste domingo no antigo Cine Sol poderá encontrar mercadorias com preços razoáveis. Além disso, vocês podem sintonizar diariamente o Programa do Ratinho e no domingo tem o programa do Silvio Santos. Uma novela boa, boa mesmo, é a Amor e revolução. Agora, outra coisa boa, a Hebe, está na RedeTV, né?”
Percebo que nosso prazo de validade havia se escoado. Como um ninja, SS dribla nossa equipe e suavemente mergulha em sua caranga dando um último adeus. Fico ali, na calçada da fama, digerindo a mensagem do Messias na porta do Jassa. Humildemente, desmontamos nossa barraca e desocupamos a praça.
Hoje carrego comigo uma piqueteira certeza. Protestar adianta! E o povo, mesmo quando é um conjunto unitário, pode tudo quando leva às ruas sua causa. Retornei em êxtase para minha cama king size, iluminado pelas palavras do guru do Baú: “Do mundo nada se leva! Vamos sorrir e cantar!”.
Agradecimento: Nautika.com.br