Quem entende a arte de hoje?

O cronista Antônio Torres não compreenderia o tipo de obra exibida na Bienal de São Paulo

por André Caramuru Aubert em

Se estivesse vivo, o cronista Antônio Torres não compreenderia o tipo de obra exibida na Bienal de São Paulo. Como, aliás, eu também não

A gente tem a mania de achar que as coisas hoje são muito diferentes do que foram no passado. Só que nem sempre isso é verdade. Algumas vezes elas mudam; outras, nem tanto. Uma suposta novidade atual é a inédita democratização da expressão artística e pessoal que as ferramentas digitais trouxeram. Assim, qualquer um hoje pode gravar seu vídeo ou suas músicas, pode escrever seus poemas, seu romance ou seus pensamentos íntimos, e a web estará lá, como um grande e generoso canal para divulgar as obras. Só que isso não é tão novo assim. Embora com outras ferramentas e com mais limitações, as pessoas sempre deram um jeito de expressar o que sentiam.

Por exemplo, o então temido cronista mineiro Antônio Torres, que foi o mais lido no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século 20, já reclamava, em artigo de 1918, da profusão de poetas sem qualidade que assolavam o Brasil daqueles dias. É, não havia internet, mas havia gráficas baratas, e os rapazes pagavam do próprio bolso e saíam com os livrinhos debaixo do braço para impressionar as namoradas. Bem-humorado e ácido como de costume, Torres propunha, no texto, a criação de um Gabinete de Profilaxia e Extinção de Poetas, anexo à Chefia de Polícia, “destinado a catrafilar todo indivíduo que, tendo mais de vinte e cinco anos de idade, tivesse o desaforo de fazer um soneto amoroso”. Antônio Torres talvez pirasse, hoje, com as mídias eletrônicas, mas não estranharia o fato de as pessoas quererem se expressar. E provavelmente se divertiria bastante com YouTube & cia., que mostram coisas bem mais interessantes do que aqueles embolorados sonetos amorosos...

De algumas outras ondas recentes, Antônio Torres reclamaria, mas sem estranhar. Por exemplo, a reforma ortográfica. Num texto de 1920, ele escrevia: “Peçamos a Deus que a Academia [Brasileira de Letras] seja sempre assim: preguiçosa e inútil. Da única sessão que os acadêmicos se reuniram para resolver coisas, saiu um monstro: a reforma ortográfica. A pretexto de facilitar o ensino da escrita, nivelou a Academia os intelectuais e os vendeiros. Que nos importa a nós, senhores, que o vendeiro ali da esquina escreva caxorro com x? Devemos acompanhá-lo?”. Pois não foi exatamente o que fizemos, no último acordo ortográfico? Não abolimos o voo com “ô” e a ideia com “é” justamente para deixarmos de constranger quem escreve cachorro com x?

INSTALAÇÃO COM RODAPÉ


Mais do que a nova reforma ortográfica e a troca dos sonetos pelos vídeos, Antônio Torres acharia esquisito o que aconteceu com as artes plásticas, numa época em que pintar uma tela saiu de moda e o bacana é empilhar entulho, tábuas e retalhos de pano, pingando parafina derretida em cima e ter que explicar, via nota de rodapé, o que aquilo significa. Sim, porque ficou idiota olhar para uma obra de Monet, de Velázquez ou de Tarsila e, simplesmente, se extasiar: a arte, hoje, requer notas de rodapé. É engraçado imaginar o que Antônio Torres escreveria a respeito da última Bienal de São Paulo e da discussão que ela suscitou (em vez de estética, ela virou, por causa de uns urubus, ambiental). E o que diria ele do perfil que um respeitado crítico de arte escreveu a respeito de um ainda mais respeitado artista, dizendo que o grande mérito dele, o artista, era não ter técnica, porque assim ele poderia ser... um artista melhor? Quanto menos técnica, mais arte? Quem tem técnica é artesão, artista tem conceito? Caraca! Essa coisa da arte contemporânea, isso sim mudou, e acho que Antônio Torres estranharia – e não entenderia. Como, aliás, eu também não. Só que, ao contrário dele, que tinha uma paixão incontrolável pela polêmica, eu não tenho coragem de admitir em público.


*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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