Diário de um mago

Trip apresenta com exclusividade o novo guru da auto-ajuda e seu manual de como se dar bem na vida sem se vender e só fazendo o que gosta

por Phydia de Athayde em

Às seis e meia da manhã de um dia de semana no Rio de Janeiro, pessoas comuns lotam metrôs e avenidas a caminho do trabalho. Romário de Souza Faria faz parte dessa massa, mas é um sujeito incomum: seis e meia da manhã, para ele, é hora de chegar em casa. Hora de fechar um dia que começou por volta de cinco da tarde, estendeu-se pela noite, invadiu a madrugada. Nascendo o sol, ficou lhe faltando um compromisso: é jogador de futebol e precisa treinar. "Hoje o artilheiro Zorro vai atacar de novo", brinca com um amigo, em referência às suas olheiras. "Vou direto pro treino, faço uns três gols e peço pra sair." Eterno pagador de promessas, Romário responde à chamada no centro de treinamento do Flamengo. Marca três, e cama.

Boêmio como seu edevair, o pai, desde cedo Romário ganhou o carimbo de jogador-problema. Acontece que hoje, aos 33 anos de idade, todo o mundo percebeu que é melhor deixá-lo ser como é. Sacaram que, a exemplo de Pelé e Coutinho, não há companheiro mais eficiente para Romário do que sua própria felicidade. Enfim, ele chegou lá: passou a ser ouvido como quem tem o que dizer, respeitado por não deixar o sucesso anular suas convicções. É bom administrador de ideias, empreendedor. Faria mais sucesso do que alguns gurus de auto-ajuda. Embora ainda não se saiba como 100% de certeza se Romário é tão bom com a bola porque faz o que quer, ou se faz o que quer porque é tão bom com a bola. Ele foi cunhando aos poucos um particularíssimo manual de como se dar bem na vida.

Trip - Parece que você precisa fazer tudo à sua maneira para estar feliz e, assim, render tudo o que pode dentro de campo. Como é isso?
Romário - Minha cabeça sempre me condiciona. Sempre que eu estive feliz fora de campo, as coisas saíram legais. O maior motivo das minhas lesões ano passado foi o meu corte da Copa. Isso me abalou realmente, foi uma merda, tive de oito a 12 problemas musculares. Em 95, quando eu me separei, com a ausência dos meus filhos, não estive bem apesar de não ter tido lesões constantes. Estava com a cabeça muito ruim. Hoje sou dono de uma casa noturna. Quando não estou legal fora, chego aqui dando esporro em todo mundo. Falando um montão de merda. O Cássio, meu sócio, é tipo um conselheiro e me faz ntender que aquela forma que eu falei não está legal. Aí eu faço o exame e daí a pouco me retrato. Isso é tudo reflexo de fora.

Você tem 33 anos. Como está sua condição física? Fisicamente, eu nunca fui um jogador privilegiado. Então, o que aconteceu? Mesmo sem gostar, eu tive de arrumar uma forma de treinar. Hoje, dentro daquilo que eu acho que é uma condição boa, me sinto melhor do que na copa de 94. Até porque, depois que a gente vai ganhando idade, perde algumas coisas que a juventude proporciona, mas ganha outras também.

Esse treino diferenciado é por causa da idade ou por que você não gosta mesmo de treinar? Porque eu não gosto e por causa da idade. Treino meia hora enquanto o grupo treina uma hora, mas essa meia hora é puxada...

Se você não treina tão forte, o que te dá condições para arrebentar numa partida? Eu sou movido a desafios. Minha vida sempre foi assim. Quando as coisas são muito boas, muito fáceis, pra mim não é legal. Eu gosto que as pessoas briguem comigo, falem mal de mim. Isso é uma coisa que me motiva. Por exemplo: agora está tudo ótimo, está maneiro e o caralho. Mas no meu interior falta alguma coisa, falta aparecer um babaca falando mal de mim. Isso me faz dar mais alguma coisa.

Dizem que, quando o jogo está difícil, você costuma pedir a bola, tipo "deixa que eu resolvo". Rola isso de verdade? Você ganha respeito não por falar, ganha respeito com atitudes. Uma é essa. No Flamengo, goje, é assim: quando o jogo é fácil, ninguém me procura. agora, quando a pica está no cu, cadê o baixinho? Está lá, mete nele. Eu gosto assim. É igual Jesus Cristo: entro lá e salvo. Estou ali para isso, sempre fui o primeiro em relação às pessoas confiarem. Aliás, quando não for assim, vou deixar de jogar futebol. 

Que análise você faz de si mesmo como jogador?  Eu não sou muito humilde, gosto de falar a verdade.

Pode falar.  Só não sei marcar. No resto, sou perfeito. E para ser atacante, não precisa marcar. Então eu me acho um jogador perfeito, principalmente dentro da área. Dentro da área, eu perco para o Pelé, que para mim é o top, o deus do futebol, o nosso deus. O resto, se tiver alguém, empata comigo.

Você disse que o Pelé é o top... O Pelé não tem comparação.

E o Ronaldinho?  O Ronaldinho... está entre os dez melhores.

Maradona.  Eu fiz mais gols do que ele, ganhei mais do que ele. No futebol moderno dos últimos 15 anos, Maradona só perde para mim.

O que você acha da pessoa dele? Eu li um dia desses uma entrevista do Dunga e ele tem razão: a gente tem dois caminhos na vida. Não sei se foi por causa das companhias ou não, mas o Maradona escolheu um caminho ruim. Só que é um cara novo, tem 38 anos, ainda pode voltar a pegar o caminho bom. E merece, é bom. Tem bom coração.

Outra pessoa polêmica, seu amigo, é o Edmundo. Como foi a história de quando você o conheceu? É verdade que disse para ele ser diferente de você? Quando cheguei no Rio de umas férias do Barcelona, comecei a ouvir falar do Edmundo. Ele era do Vasco. Aí me apresentaram, conversamos. Eu não me lembro bem, mas falei para ele que Romário não é todo dia que aparece. Eu tinha 28 anos, e ele, uns 20. Então falei que se ele quisesse se espelhar em mim, era pra ser só dentro de campo. Até porque eu não era espelho de ninguém. Não me via como exemplo de ninguém naquela época.

Por causa desse lance de sair pra caramba. Gostar da noite... Exatamente. Sair pra caramba, não gostar de treino, um montão de mulher, essas coisas. Mas ele não seguiu muito o meu conselho (risos). Tudo bem: foi bom pra ele porque fez bem pra ele, está feliz assim. É o que importa. Veja só: um jogador que sai à noite, que bebe, que fuma normalmente não é dos melhores. Mas não adiana dormir cedo e não jogar porra nenhuma. Eu sou mais aqueles tipo Edmundo, Válber. O meu sonho era jogar num time, com Edmundo, Válber, Renato Gaúcho, Dunga, Branco. Esses caras não dormem, mas resolvem todo jogo.

Vigília
Na vida de Romário, os "ofícios" sexo e futebol se misturam e se confundem em sua peculiar escala de prioridades. A despeito da castidade pré-jogo prescrita pela medicina esportiva mais ortodoxa, com ele é diferente. E dá certo, haja vista os mais de 660 gols que já fez na vida. Convencido de que o caminho é por aí, Romário pediu para ficar em quarto separado dos colegas, durante uma pré-temporada do Flamengo. Fala-se até hoje da fila de mulheres que se formou na porta desse quarto. Casado desde 1996 com a carioca Danielle Favatto, morena de corpo perfeito e alma evangélica - é membro da Comunidade Cristã da Barra da Tijuca -, Romário submeteu-se a "jantares de apresentação" e conversas a portas fechadas com o sogro para que tivesse a mão da moça. Ainda assim não se desquitou da noite, e é nos braços dela que comemora as vitórias em campo. Pode até parecer que não é direito, mas foi o que foi acordado: tanto agora quanto no casamento anterior - com Mônica Santoro, mãe de dois de seus três filhos -, ninguém, nem mesmo o padre, falou em fidelidade. Com uma ou outra exceção, Romário só chega em casa cedo quando seu time perde. Aí, melancólico, consola-se chafurdando em filmes de ação na enorme pilha que possui.

Transar antes do jogo faz mal? Acho que teria de estar no contrato do jogador de futebol: o jogador tem de transar no dia anterior e, se puder, no dia do jogo. Eu, quando transo antes do jogo, sinto uma coisa muito diferente. Fico leve, minhas pernas ficam ágeis, mexem mais. Claro que isso é muito de cada um. Conheço amigos que não podem transar antes e muito menos no dia do jogo; e conheço pessoas que transam antes, transam no dia e dá tudo certo. Não é só porque eu faço que os outros têm de fazer, mas, se eu não transar um dia antes do jogo, vai faltar alguma coisa nos meus movimentos.

Como você acha que vai estar fisicamente aos 50, 60 anos?  Sabe que eu nunca parei para pensar nisso? Sou uma pessoa que vive muito a vida no momento. Procuro sempre fazer aquelas coisas que eu acho que é legal no momento.

Transar.  Isso vai ser para a vida toda. Ainda mais agora, com o Viagra, é mole.

Você tomaria? Porra, eu tomaria um litro. Ou um quilo. Não posso é deixar de transar. Se tiver em líquido, vai ser mais fácil, a gente bebe: "Dá um copo de Viagra aí!" [risos]

Como foi a sua primeira vez?  Eu tinha uns 15 anos e namorava uma menina cabaço. Ela não queria me dar por causa disso. Então comi a amiga dela. Falei para ela: "Não vai me dar? Então vou ter que pegar sua amiga." E peguei.

E aí já gostou...  Ah, essa é minha profissão.

No sexo, tem alguma posição que você gosta mais? Sexo para mim está tão no sangue que adoro qualquer posição. Hoje não tem muita graça fazer sexo na cama. Cama é bom para dormir. A coisa é no elevador, na praia, na sala, no banheiro do restaurante, no avião.

No avião?! Você já transou no avião?  Hoje eu sou casado, não posso falar senão a Danielle me bate.

Então me conte uma história que tenha rolado com ela. Ah... Com a minha mulher rola muitas vezes de transar no carro. Na estrada Rio-Búzios, passando carro do lado mesmo, não tem problema.

Se você pudesse, transaria com que frequência? Se eu pudesse, transava todo dia. Por ela acho até que posso. Transando todo dia, três vezes por dia no máximo, está bom. Na minha mulher atual, por exemplo, já dei dez.

Dez?!  Logo no cartão de visita, dez. Aí não tem como não casar. Ela falou: "Vou casar porque esse cara é um casca-grossa".

Impressionou. A primeira impressão é a que fica. Não é mentira, não. Dez! Eu dei mesmo e não foi uma vez só.

Deu uma, daí descansou um pouquinho, deu outra?... Não tem essa de descansar. É pau dentro, dez sem tirar.

Você S.A.
"Romário nunca reclama do time, sempre dele mesmo", conta o amigo do futevôlei Wilson Mussauer. "Ele se culpa sempre pela derrota." A maior delas veio com o corte da Seleção Brasileira pouco antes da Copa de 98. Em 1999, refeito do trauma, o craque avisa que este será o melhor ano de sua carreira. Começou bem, campeão da Taça Guanabara e titular da Seleção. Sonha jogar as Olimpíadas de 2000 enquanto transmite positive vibrations através das camisetas que passou a exibir quando faz seus gols. Marketing pessoal? Você S.A.? "Só faço porque acho que tenho de fazer, e tento fazer do meu jeito", responde. "Mesmo a gente fazendo as coisas boas, tem um babaca que acha que é errado. Já recusei propostas de ganhar R$500 mil em 15 dias. Minha parada não é essa." Apesar de só falar nas Olimpíadas, os planos parecem ir mais além. "Será que eu vou estar bem daqui a três anos?" pergunta ele ao preparador físico do Flamengo, Helvécio Pessoa. É só fazer as contas e vamos descobrir o que Romário pensa. Pensa em disputar a próxima Copa. Faz sua parte: todos chegando cedo para o treino e ele em cima da hora; todos correndo para aquecer e ele sequer presente no gramado; todos fazendo circuito e ele brincando de disputar bola, mangando. Todos e ele só são o mesmo grupo quando o coletivo começa de fato. Na hora em que o treino acaba, naquele instante em que todos são iguais, suados, o que se nota é um pequeno culto. Pelo menos uma meia dúzia de jogadores devagar se aproxima do craque, em silenciosa reverência. Como Romário vai estar em 2002 não se sabe. Mas sempre vai ter lugar para o mito.

 

Seus amigos falam que você tem uma religiosidade, vai à igreja antes do jogo. Se benze durante a partida. Nem parece...  Religião é uma coisa muito sagrada. É gosto. É como mulher: para mim, aquela mulher é feia, e para você é bonita. Eu tenho que aturar, porque gosto é igual cu - desculpe a expressão [Ri] -, cada um tem o seu. A religião é a mesma coisa. Tenho a minha e respeito a dos outros. Quando vou à igreja no dia do jogo, não vou ficar: "Papai do céu, me dá a oportunidade para fazer três gols". Nada disso. O que eu peço a ele é poder jogar todo o jogo. Sempre peço para o meu time ganhar, isso é normal. Mas vou para agradecer as paradas boas. A fé que eu tenho é a seguinte: coisa boa é Deus que me dá; Coisa ruim, sou eu mesmo que faço as merdas. 

Até hoje você mantém uma ligação com favela? Conserva as amizades de lá? Eu sou favelado. Tinha asma até uns quatro anos atrás, bronquite, essas porras todas de favelado. Nasci na favela, então sou favelado. Não saio da minha origem. Eu sei que muitos que nasceram lá têm vergonha ou preconceito. Eu sou, porra, e me orgulho disso. Na favela tem pessoas dignas como eu, muitos. Tem muita gente interessante na favela. Você tem que ser respeitado pelo o que você é, não por onde você mora, pela sua cor. Aqueles que não me respeitaram mandei tomar no cu deles. Foda-se. Se querem que eu me foda, quero que eles se fodam também. Eu sou igual índio, só ataco quando sou atacado. Sou o maior amigo dos meus amigos. Mas também sou o maior inimigo dos meus inimigos.

Sua vida mudou muito depois que nasceram seus filhos? Eu sempre gostei de velocidade, por exemplo. Corria muito, fazia um montão de merdas. Depois que veio minha filha, não corri mais. Agora eu tenho alguém que vai sofrer por mim, fora meus pais.

Corria  muito aonde? De carro, na cidade? Corria na Rio-Teresópolis, corria na linha vermelha. Chegava a dar 280 por hora no meu porsche 911 turbo. 

Hoje, o que te dá medo na vida? O que mais me apavora é deixar de ser saudável, pegar alguma doença. Não desejo isso nem a um inimigo. 

Você tem medo de ficar careca? Eu já estou careca. 

Mas você não vai passar aquele sprayzinho? Eu usei um remédio em janeiro de 98, mas falaram que tinha algumas coisas que estavam no dopping. Parei, nunca mais. O meu cabelo caiu muito depois dos 25. Agora está até voltando a crescer.

Como? Está voltando porque estou menos estressado. Mais tranquilo. Mais feliz.

Você pensa em ser presidente do Flamengo algum dia? Já comecei a tentar fazer algum tipo de plano para isso. Seria interessante, desde que fosse uma coisa profissional: a Flamengo S/A. O clube brasileiro deve entrar nessa onda de profissionalizar. Porque está na hora de as pessoas pagarem pelo serviço. Hoje em dia, o presidente de um clube pode fazer mil merdas.

O pessoal que trabalha em escritório tem hora pra tudo. Você seria feliz assim?  Não sei. Sabe o que acontece?Vivo tão intensamente esse negócio de jogar futebol que sei que vai ser a maior dor parar. Deixar de fazer aquela rotina de 20 anos com certeza. Não vai dar para acordar cedo porque seis horas estou chegando em casa. Quando jogador, sempre gostei de sair. Imagine depois que parar. Ai vai ser difícil eu voltar para casa. 

Eu sei que você tinha problema com peso. Como tem feito? Outra coisa totalmente contra a regra do atleta profissional é isso. Eu sempre comi muito e de tudo. Bebi muito refrigerante. Comi doce. Então não sou um cara muito apropriado para falar de alimentação para ninguém. Como a porra toda e toda hora.

Você já comeu um churrascão antes do jogo? Antes do jogo, não. Mas todo sábado eu como uma feijoada na minha mãe. Como à uma e meia e vou treinar às três horas.

E não revira nada? Ainda não.

Qual seu prato preferido? Fora alho, cebola e jiló, eu como a porra toda. 

Não gosta de alho e cebola? Ainda mais que é ruim para beijar. Se passar a noite comendo alho e cebola, vai beijar como? Dá? Não dá? [Risos]

Chegando perto dos seus amigos, do pessoal que te conhece, vai desmontando aquela coisa de ser inatingível. Como você é fora dos campos? Sou mais humano do que talvez algumas pessoas. Sou amigo dos meus amigos. Sempre que posso ajudar, ajudo pessoas que nem conheço. O mais importante de tudo é o seguinte: eu sou um cara feliz porque a dignidade se nasce com ela. Meus pais eram da favela, mas meu pai é um cara que sempre me passou que o homem, quando morrer, tem que levar a dignidade. Então isso morre comigo. Eu posso amanhã não ter nada, mas digno eu vou ser.

Você não pira com a fama? Não só eu como a maioria das pessoas famosas leva na boa. Mas eu tenho uma coisa comigo: sempre quis ser o que sou hoje, desde moleque.

Ficava sonhando?  Não acredito em sonho. Sonho, o caralho. Você tem que correr atrás do seu objetivo. O meu era ser o maior do mundo naquilo que fizesse. Escolhi ser jogador, então sou o melhor. Tenho certeza de que se eu fosse doutor, ia ser o melhor também. Você tem que mentalizar: vou chegar lá. Talvez poucas pessoas tenham um passado... Não sei se você reparou que a imprensa fala bem de mim porque jogo pra caralho, porque sou bom. Se não fosse bom, eles iam me engolir. Eu faço um montão de merda e falo as minhas verdades. Muitos aí - não vou citar nomes - são manipulados. Eu não vou ser manipulado nunca. Desde moleque sou como sou agora. O que eu estou falando contigo, falava quando tinha 15 anos. 

Quando era moleque, você pensava no que ia ser quando crescesse? Sempre pensei em ser o melhor jogador do mundo. E consegui.

 

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