Pelourinho 2.0
Quando se discute a redução da maioridade penal, não se está pensando em justiças. O que está na base do debate é o mais tosco desejo de vingança
Que sei eu sobre as prisões? Leio os jornais, assisto ao noticiário da TV, de modo que fico informado do básico a respeito do tema. Tenho consciência da violência, das condições desumanas, da superlotação, do poder do crime organizado confrontando o do Estado. Mas será que alguém que não tenha vivido de perto (ou de dentro), como o meu colega colunista Luiz Alberto Mendes, tem realmente condições de falar sobre isso? Não estou certo. Mas, ressalva feita, vamos em frente.
Minha infância foi marcada por uma cadeia (para mim) romântica, o já então desativado presídio da Ilha Anchieta, em Ubatuba. As histórias da última rebelião ainda eram frescas, e aquelas ruínas assustavam, ao mesmo tempo que atraíam. A adolescência, durante o regime militar, trouxe a consciência e o medo de que prisões não eram um universo distante, e pessoas próximas, algumas das quais muito queridas, tiveram passagens nem um pouco felizes por elas. Depois veio a faculdade, e prisão virou sinônimo de Michel Foucault e seu Vigiar e punir, que acabou por trazer, para mim, uma nova luz sobre o assunto, da qual eu por muito tempo não me libertei: as prisões, assim como as escolas, as igrejas e os quartéis, foram feitas para punir, enquadrar e controlar as pessoas, e não para educá-las (ou regenerá-las). Como eu sempre me senti, na escola, como se estivesse numa espécie de prisão em regime semiaberto (passava o dia preso, mas podia dormir em casa), Foucault fazia sentido de um modo muito particular.
Com o tempo, aquele meu radicalismo adolescente foi ficando para trás, e deixei de ver o conjunto das instituições que compõem o Estado moderno como o capeta encarnado. A escola, por exemplo, não representava mais aquele peso de prisão light que um dia teve, e passei a enxergá-la como algo fundamental para a sociedade. Mas, com relação às prisões, o tempo não conseguia amenizar as impressões que Foucault me passou. E aquele discurso da “recuperação” não deixava de soar como uma das maiores hipocrisias que os tempos modernos jamais criaram. Será que, pelo menos nesse caso, as visões de Foucault ainda permaneciam intactas?
Historicamente, lembrava Foucault, “ficar preso” era apenas a possibilidade menos dolorosa de uma escala de punições que, no outro extremo, incluíam não apenas a pena de morte, mas a morte com requintes impensáveis de sofrimento, apenas para dar um exemplo, o esquartejamento no qual cada um dos quatro membros do condenado era puxado por um cavalo, até que, lentamente, o corpo se desintegrasse. Por trás disso tudo, o que o Estado moderno pretendia fazer, quando surgiu, era levar a racionalidade às prisões (e às punições). Mas será que ele estava, de fato, mudando aquele quadro milenar? Não, não estava. Pelo menos no Brasil.
OLHO POR OLHO
Vejamos: quando se discute hoje a redução da maioridade penal, não se está pensando em controle, justiça e muito menos em estratégias de recuperação dos menores. O que está na base do debate é o mais tosco desejo de vingança, desejo que é em nós atávico, cuja primeira menção por escrito aparece no código de Hamurabi, de 1.780 a.C. (sim, a lei de talião; do “olho por olho, dente por dente”). E o que nos diz o fato de um país como o nosso ter uma população carcerária gigantesca, de cerca de 608 mil presos?
O nosso sistema prisional não é parte de uma estratégia de controle por parte do Estado moderno, mas um pedaço do gosto pela vingança de uma sociedade arcaica e cruel, que ainda não superou o fascínio pelo espetáculo dos pelourinhos e das execuções em praças públicas. E esse arcaísmo cruel é alimentado pela falta de coragem do Estado em lidar, de frente, com a questão. As prisões, no Brasil, dizem muito sobre quem nós somos. E o que elas dizem não é nada bonito.
P.S.: Leitores, podem me dar os parabéns, pois esta é a minha centésima coluna para a Trip. Enquanto eu tiver forças e vocês me suportarem, estarei por aqui.
*André Caramuru Aubert, 53, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com