Os dilemas de Alexandre Nero

Encarnando o maestro João Carlos Martins no cinema, Alexandre Nero abre sua vida e fala sobre o impacto violento da fama

por Pedro Só em

Alexandre Nero está tomando um remedinho. Ele não lembra o nome na hora da entrevista, na ampla sala de sua casa em um condomínio no verdíssimo Itanhangá, na zona oeste do Rio de Janeiro, mas garante que não é nada forte. “Não é tarja preta. É para tirar a ansiedade, algo bem tranquilo”, diz. A psicanálise já tinha ajudado o curitibano de 46 anos a se recuperar do atropelamento pela fama em 2014, quando, interpretando o Comendador José Alfredo, na novela Império, da TV Globo, virou xodó nacional. Ali, se viu transformado em celebridade, recebendo um tipo de atenção bem diferente da que estava acostumado como músico profissional, atividade que exerce desde os 20 anos.

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“Eu tenho uma segurança na música que não tenho como ator. Sei o que faço como músico; como ator, não sei”, compara. Com três discos e um DVD (Revendo amor – com pouco uso, quase na caixa, de 2014) na carreira solo, mais cinco trabalhos por grupos diferentes, Nero está em cartaz nos cinemas como protagonista de João, o maestro, sobre o virtuose do piano João Carlos Martins. Após se consagrar internacionalmente, o músico paulistano viveu acidentes e incidentes que o privaram dos movimentos, primeiro na mão direita, depois, na esquerda também. Mas hoje, aos 77 anos, consegue se apresentar como regente.

“Tem essa coisa de superação, mas é a vida dele, não é ficção. Ele realmente ficava ensaiando com elástico, com ferro, até sangrar a mão. A obsessão dele não está como uma coisa bacana. Ele sente dor e continua tocando. Pessoas acabam estragando a própria vida assim”, conta Nero, sem medo de dar o spoiler que está a um Google de qualquer espectador em potencial.

Com as irmãs e os pais: quando a mãe morreu Nero tinha 14 anos e o pai, quando ele tinha 17, ambos de câncer; no colo do pai, quando criança; com a mulher, Karen, e o filho, Noá - Crédito: Arquivo pessoal

No filme dirigido por Mauro Lima (de Tim Maia e Meu nome não é Johnny), o ator precisou usar o lado músico para viver o maestro, mas não de maneira óbvia. “Eu trabalhei para enganar que eu toco piano. E como se engana? Sentando como pianista, se posicionando como pianista. E, principalmente – para evitar o que, como músico, me incomoda ver em outros filmes –, tocando na região certa do piano. Eu realmente estou tocando ali, mas não estou tocando a nota certa, só a região certa.” 

Um barzinho, um violão

No momento, Alexandre Nero não está fazendo terapia, mas, satisfeito com os efeitos da ajuda química, superou as dificuldades para dormir e a retração social. “Eu sou um cara muito tímido, sempre fui. E essa coisa de exposição na TV foi muito complicada pra mim. O assédio na rua, quando estou com meu filho [Noá, de 1 ano e 8 meses] é muito agressivo, pelo menos para os meus parâmetros. Eu tomo sustos. Aquilo estava me tirando a calma, eu ficava com medo de ir a certos lugares. Estava ficando antissocial pra caramba”, conta.

Nascido em Curitiba, filho do meio entre duas irmãs, foi morar em São Paulo quando mal andava, e cresceu em bairros como Paraíso e Pacaembu. O pai, engenheiro agrônomo, trabalhava como gerente de vendas numa empresa têxtil, e a mãe nunca foi apenas dona de casa. “Ele tentou abrir negócios próprios, e minha mãe sempre trabalhava neles. Mas nunca deu certo [risos].” Ela morreu, de câncer, quando Alexandre tinha 14 anos; o pai se foi dois anos e meio depois, vítima da mesma doença.

Aos 17 anos, o órfão tímido que havia buscado na música uma forma de ser notado pelas garotas não tinha muito o que fazer em São Paulo com seu diploma de técnico em agronomia, obtido com três anos “muito felizes” em um colégio interno no interior de Minas Gerais. Foi morar em Curitiba com um tio e, dois anos depois, se jogou na vida de músico da noite, morando em pensão e se misturando à cena local de artistas e boêmios. “Deixei de ser um músico de bar pra ser um cara com coisas a dizer, colocar uma digital nas canções, porque conheci pessoas muito interessantes. Todas as minhas referências artísticas são de Curitiba: [Dalton] Trevisan, [Paulo] Leminski, Luiz Felipe Leprevost, o grupo Fato [do qual fez parte], um bocado de gente...”

Nero tocando violão quando retornou a Curitiba - Crédito: Arquivo pessoal

Casado com a atriz e consultora de moda Karen Brustollin, Nero também está no ar na TV Globo com a série satírica Filhos da pátria, e atua em dois filmes com estreia prevista para 2018: Albatroz, dirigido por Daniel Augusto, com roteiro de Bráulio Mantovani, e Sem pai nem mãe, de André Klotzel. No ano que vem, talvez viva Nelson Rodrigues, em outro projeto cinematográfico ainda embrionário.

Como pai “novo”, porém, vive imerso no universo do pequeno Noá e não para de alimentar um projeto musical centrado nessa experiência. “Minha vida hoje é criança. Porra, mas que clichê, né, cara? Mas eu só penso em criança, fico falando direto em criança. Nada me interessa mais. E obviamente já tenho um disco pra criança que quero fazer”, conta. Autor de várias trilhas de peças infantis, ele observa que todos esses anos andou errando. “Minhas músicas são muito bonitas, modéstia à parte. Mas agora, com meu filho, eu descobri que eles estão cagando pra isso. As crianças não estão nem aí pra essas músicas bonitinhas. Eles querem é rock’n’roll, cara! Querem é porrada.”

Por mais bem-sucedido que seja como ator, ele lembra que sempre terá a música como seu supertrunfo, sua cartada decisiva. “Sei que se eu precisar, a música é a minha bomba atômica. Meu pai sempre falou: ‘Tocando violão, você nunca vai passar fome’. Enquanto eu tiver minhas mãos, eu me sinto muito seguro.”

Trip. Você identificou no pianista João Carlos Martins algum traço seu? Alguma obsessão que tenha ido além do saudável?

Alexandre Nero. Além do saudável? Eu sou bem longe do saudável [risos]. Ele é muito irônico, muito sarcástico, tem um humor com que eu me identifico. Mas não sou esse cara obsessivo. Aí é que tá: ele é um cara que não para nunca, eu sou um cara que não para nunca. A diferença é que o João sempre teve foco. Eu não tenho foco. O João, não à toa, se tornou um dos maiores pianistas do mundo. Eu sou músico, né? Toco violão, toco cavaquinho, toco guitarra... Sou ator... Eu sou muita coisa – em nível médio. Ele é uma coisa só e foooda, maravilhoso. Mas tenho obsessão de estar trabalhando, vivo sempre pensando no trabalho.

Você começou na música já interessado em se expressar, em ser compositor, em escrever canções? O começo foi cantar. Cantando em casa, karaokê, aquelas coisas, você acha que é cantor... E com o tempo fui descobrindo que eu era muito ruim. Ainda bem. Pior é quando passa o tempo e você continua achando que o que você fazia era maravilhoso. Isso é bem ruim [risos]. Eu descobri que era bem fraquinho como cantor, e como músico. Aí aprendi a tocar violão. [Pausa, se autointerrompendo.] Na verdade, tudo começou com a vontade de namorar. O impulso de pegar um violão foi para aparecer para as meninas. Com a maioria dos músicos é assim, foi assim inclusive com o João. Tem sempre uma relação com o afeto, com ser aceito. E a compor comecei aos 16 anos. A gente começa a tocar e já tenta fazer músicas, se acha gênio, se acha foda. Compunha com um primo meu, coisas meio Legião Urbana, que era o que a gente conseguia. Com três acordes, né, o que dá pra fazer? Só conhecia três. A gente achava que era fácil fazer música que nem a Legião. A gente era tão inocente... Nesse sentido, é muito bom ser adolescente, né? [Risos.]

E isso de impressionar as meninas deu certo logo? Conseguiu chamar a atenção? Super! Olha... foi maravilhoso! É a melhor dica que poderia dar para quem quiser chamar a atenção no colégio. Eu era tímido – sou tímido. Mas você pega um violão e consegue ser assim... meio astro do rock [risos]. Eu morava em Minas nessa época, então aprendi a tocar Clube da Esquina, Sá & Guarabira, Flávio Venturini...

“Vejo o Rio muito decadente culturalmente. Está muito pobre. Hoje é quase uma cidade do interior”

Clube da Esquina, música brasileira – já foi em coisas mais complexas, né? Não passou pelo rock básico, pelas músicas da Legião Urbana? Passei também, claro. Eu tive banda de rock, adorava RPM, Blitz. Usava as roupas iguais às do Paulo Ricardo e tinha o cabelo do Evandro Mesquita. Mas pra mim nunca teve separação entre rock e música brasileira. Clube da Esquina também é rock: rock meio progressivo. Eu nunca achei que rock tinha que ser com guitarra. Rock vai mais da postura: pra mim Zeca Pagodinho é um dos maiores roqueiros do país.

Quando foi que você decidiu que seria músico, artista, e não engenheiro agrônomo ou outra profissão com nível superior? Foi lá pelos 20 anos, quando comecei a fazer teatro. Aos 19, entrei pro teatro para aumentar o meu repertório de palco. Sendo um cara tímido, queria melhorar a performance. Fiz um cursinho aqui, outro ali, pra entender esse universo: luz, figurino, cenário... Aí as coisas começaram a se misturar. Mas não a ponto de eu dizer que era ator. Se tem uma coisa de que eu me orgulho, bicho, é de ter de-morado 20 anos pra me assumir como ator. Demorei pra me assumir: “Sim, eu sou ator!”. Porque realmente acho a profissão mais difícil do mundo. Ninguém entende direito. O que é um ator? É um ser humano profissional? [Risos.] Sei lá... Meio maluco isso, não? A música, por mais subjetiva que seja, é matemática, é física. As ondas do dó, na primeira oitava – a frequência é 260 Hz. Não existe “me dá uma nota aí”. Você pede um dó, é específico. Agora, como você fala isso pra um ator? “Me dá um choro aí.” Mas qual choro? Que choro que você quer? “Me dá uma risada.” Qual risada? Tem milhares de risadas... Não existe nada palpável, é uma fumaça. Tem umas regras na música que você domina e pronto. Na atuação, você até tem um norte, mas nunca se sabe ao certo o que vai funcionar.

Consciente disso, como foi que você conquistou segurança como ator? Fazendo. Agora, segurança nenhuma, né? Não vejo outra forma de aprender as coisas que não seja fazendo e repetindo, repetindo, repetindo. Incansavelmente. É um pouco a obsessão do João lá...

Você tem uma visão crítica do que é ser bem-sucedido. No ano passado montou e atuou em O grande sucesso [do curitibano Diego Fortes], que mostrava isso de forma bem autoirônica. Como encarou o reconhecimento que atingiu na TV em 2014? Eu já tinha chegado ao sucesso. Sei que isso parece papo de bicho-grilo, ainda mais nesse momento em que o mundo só quer falar de economia. Cultura é coisa de vagabundo... Dão R$ 30 bilhões pra megaempresa tal, mas R$ 2 milhões pra cultura é muito dinheiro? A ignorância pegou de uma maneira bizarra... Sei que parece papo de maconheiro, artista, vagabundo, mamador de lei Rouanet, essas caricaturas que os reacionários querem implantar na cabeça dos menos informados. Mas eu já era sucesso desde Curitiba. Eu vivia dignamente com o meu trabalho, e eu curtia. O fato de ter vindo pra Globo e hoje ser protagonista de novela faz com que tenha um assédio maior, receba mais dinheiro e seja mais reconhecido. Mas, sem arrogância, eu já me considerava um sucesso. Comprei meu apartamento tocando na noite! Isso é um puta orgulho pra mim.

Em São Paulo ou em Curitiba? Em Curitiba, hein!? Se fosse em São Paulo seria mais fácil [risos]. Eu tenho o maior orgulho dessa trajetória. Nunca fui rico, mas nunca fui pobre. [Pausa.] Quer dizer, fui, quando comecei. Perdi os meus pais muito cedo, fiquei um tempo na merda. Mas depois de alguns anos trabalhando, as coisas aconteceram pra mim. Então senti que tinha uma aptidão. Eu me sentia um cara de sucesso, um cara bacana. É claro que nos parâmetros econômicos, sucesso está ligado a dinheiro, a poder, a ser fodão, aparecer na TV. Mas isso pra mim é bobagem.

Capa do DVD de Nero, lançado em 2014; e no ensaio com a banda no casarão em que ocorreram as gravações de "Revendo amor com pouco uso quase na caixa" - Crédito: Marlon de Toledo/divulgação

Na infância, você tinha bochecha grande, era sacaneado com apelidos. Depois começou a tocar violão, chamou a atenção das meninas. Importa mais o sucesso social? Sim. Esse sucesso, o de ser socialmente aceito, já tinha acontecido. Talvez seja um dos motivos pra eu ter falado “bicho, música é o que quero fazer da minha vida”. Porque foi quando as pessoas começaram a olhar pra mim. Até então era brincadeira, em casa, até os 18... Quando eu comecei a trabalhar, tocar na noite mesmo, aos 20 anos, eu vi que tinha uma coisa ali. “Aquela menina ali, ela tá interessada em mim?! Nooossa!” Ela nunca iria se interessar por mim se eu não tivesse com esse violão na frente [risos]. Essas coisas, esse sucesso social foi o norte pra eu seguir. Sempre fui um cara gordinho, sempre, a vida toda. Nunca fui gordo, mas também nunca fui magro. Vivo no efeito sanfona. Vai ser eternamente assim.

Para um ator isso pode ser bom, pela versatilidade, não? Sim, é maravilhoso. Eu ganho peso fácil, obviamente. E consigo perder – até agora, pelo menos – de maneira mais ou menos fácil – porque fácil nunca é, né? Consigo ficar dentro de uns padrões interessantes. A minha cara também é uma cara meio comum, então consigo ser um cara pobre, um cara rico, bonito ou feio. Eu não sou um cara lindo, então tem essa vantagem de ser o “médio”.

Você, urbano, criado em São Paulo, estudou três anos em escola técnica de agropecuária. Por que esse interesse na adolescência? Meu pai estudou agronomia e tinha feito esse curso técnico num colégio na cidade dele, em Muzambinho [no sul de Minas Gerais], cidade também do meu avô. Ele contava as histórias, e eu sempre tive muita curiosidade. Fiquei entre os 14 e os 17 anos lá, e foi realmente muito divertido.

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O que você sabe fazer como técnico em agropecuária? [Risos.] Eu não sei fazer nada! Hoje eu só sei que boi muge. Na época eu não sabia nem isso, era um cara de São Paulo, pô! A primeira vez em que um boi veio pra cima de mim eu saí correndo. Hoje não sei mais nada. Mas na época fiz tudo: castrava os porcos, matava galinha, porco, mexia com os animais todos. A gente produzia e se autossustentava, comia tudo que produzia. Plantava, passava trator. Fui bem feliz lá. Colégio interno. Minha mãe falava como ameaça: “Vou te colocar no colégio interno”. Se eu soubesse que era tão legal, cara! Com 17 anos me formei. Mas em São Paulo, ia fazer o que cuidando de vaca?

Como impactou na sua vida perder os pais cedo, na adolescência? A perda dos meus pais realmente fez com que minha vida desse uma reviravolta. Se meu pai estivesse vivo... Não que ele fosse me proibir, mas ele iria me encher o saco por eu ter virado músico! Pra caralho. O sonho da minha mãe era que eu tocasse um instrumento. Só que tocar um instrumento é bem diferente de ser músico. Acho que ela também não iria ficar feliz ao me ver virar músico. Talvez eu não tivesse coragem de mandar tudo à merda e ser músico. E talvez eles tivessem dado uma ajudinha, indicado um amigo com uma fazenda pra que eu, depois de formado em agropecuária, pudesse trabalhar nisso. Os pais, mesmo sem dinheiro, sempre dão uma ajudinha, né? Mas eu não tive essa ajuda. Não tive nada disso. Minha mãe morreu quando eu tinha 14 anos; meu pai, quando eu tinha 17. De câncer, os dois. Eu sempre faço exames, porque sei que a minha chance de desenvolver a doença é de 100% [risos]. Foram processos rápidos. Na minha mãe, câncer de seio, que migrou pro cérebro. E o meu pai foi de pulmão. Tinha sido fumante, mas não inveterado. A coisa é realmente uma tragédia: o meu pai tem 12 irmãos, e todos hoje estão vivos com, sei lá, 90 anos de idade. Porra, caralho, que merda!

E por que decidiu ir para Curitiba? Uma das maneiras mais rápidas de eu me defender da perda foi sair de São Paulo. Foi o maior acerto da minha vida. Eu tinha um tio lá. Fui sozinho, sem minhas irmãs. Nós três éramos meio crianças ainda, os tios tentaram ajudar: “Vem aqui morar comigo”. Era uma situação constrangedora, porque alguns não tinham muitas condições – nem financeiras, nem psicológicas – de lidar com aqueles adolescentes meio revoltados -com a vida – porque perderam os pais, caralho! Querem matar todo mundo, aquela coisa... Eu não tinha grana, porque não teve herança. Meus pais deixaram só uma quantia que durou alguns meses, do seguro de vida. Eu precisava trabalhar. Meu primeiro emprego foi no jornal O Estado de S. Paulo, no telemarketing. Vendia assinatura. Era tranquilo porque era um telemarketing 
passivo, atendia os caras que ligavam, já interessados. Depois, no telemarketing de TV por assinatura, também não sofri muita rejeição, porque era o começo da TV por assinatura no Brasil e as pessoas tinham muito interesse. E eu era um bom vendedor, até. Mas aquilo começou a me estafar. Estudava administração à noite. Caralho, que vida é essa?! Não quero essa vida, não. Aí mandei tudo à merda e com 18 anos fui pra Curitiba, fazer cursinho lá. Hoje, adulto, vejo que quis deixar tudo que aconteceu pra trás e começar uma nova vida. E fugi pra Curitiba, fui lá morar com um tio. Fui com a desculpa de tentar cursar veterinária. Não passei, fiquei sem dinheiro, naquela de “porra, preciso trabalhar”. Procura emprego daqui, dali, e não acha... Pensei: “Vou tocar violão, bicho”. Fui entrando nos botecos, pedindo pra tocar.

“Me orgulho é de ter demorado 20 anos pra me assumir como ator. Acho a profissão mais difícil do mundo”

Como foi a vida de músico de barzinho? Passou por situações deprimentes ou humilhantes? O primeiro lugar em que toquei foi um restaurante, em que ninguém olha pra tua cara. Normal. Tinha repertório bem bacana, já. Noel Rosa, Cartola... Tinha aprendido bossa nova, coisas mais requintadas da música brasileira. Tocando muito mal, cantando muito mal. O importante é você não saber [risos]. Senão você não mostra pra ninguém. E aí você entra nessa profissão, acaba todo o glamour. Vai tocar em festa de criança, vai tocar em casamento, em shopping, em praça de alimentação. Eu fiz tudo: fiz auto de Natal vestido de árvore de Natal, tive grupo de forró em que me vestia de Lampião, participei de grupo regional vestido de gaúcho, de bombacha. Recebia um salário mínimo por mês. Era trabalho, profissão. Tocava pelo equivalente a 
R$ 100, das 22 às 4 horas. Toquei na zona também. Aliás, não era nem na zona, era o lugar em que as putas vão depois de trabalhar. Começava às 4 da manhã. Chamava Gato Preto, hoje mudou pra Pantera Negra. Parece piada, mas é verdade. [O restaurante segue sendo um reduto tradicional da boemia curitibana.]

A coleção de instrumentos de Nero; tocando com o Noá no colo - Crédito: Marlon de Toledo/divulgação

Que tipo de pai você é? Que tarefas fez quando o Noá era bebê? O que você se exige como pai? Eu me sinto ausente. Quando viajo é uma dor. Sempre fui muito desapegado, talvez por ter perdido os pais cedo... Sempre achei que iria ser meio andarilho na vida. Não sou aquele cara que fica longe sofrendo de saudade. Mas agora o buraco ficou maior. Quando estou filmando em outra cidade, minha mulher manda fotos e eu fico meio destruído. Mas me acho um bom pai, dentro do que eu faço. Eu fiz e faço de tudo. Troquei muita fralda, dei banho... Minha mulher teve licença-maternidade nos primeiros meses. E claro que temos infra para ajudar. Se eu não tivesse babá, não sei como seria. Imagina trabalhar o dia inteiro gravando novela e depois ficar uma noite sem dormir... Acho que iria sair para o trabalho no dia seguinte chorando – e seria totalmente incompetente como ator.

Dos clichês associados a Curitiba ou ao curitibano, qual lhe incomoda mais? A frieza? A antipatia? Humm... Eu até concordo com todos. A antipatia, por exemplo, é timidez. É uma coisa cultural. Quando cheguei no Rio e fui trabalhar na Globo, lembro de alguém comentando que eu era antipático. Percebi que era porque eu não dava bom dia. Hoje dou bom dia em todo lugar que vou. Mas em Curitiba as pessoas não têm esse hábito. Aí vem alguém: [faz voz exaltada] “Mas eu sou curitibano e dou bom dia!”. Claro que tem gente que dá. Não é frieza, é um jeito reservado. A real é que é chata essa etiqueta social de falar com todo mundo. Cumprimentar no elevador e falar sobre nada com alguém pode ser chato.

“A discussão política é muito importante, mas a maioria das pessoas não está discutindo, está só afirmando”

Você tem um filho carioca e já mora há dez anos no Rio. Como foi sua adaptação à cidade? O Noá daqui a pouco vai estar sibilando: “Sxxxxx aí, ó, purr quê?” [risos]. Hoje tô bem. Já foi o fundo do poço, mas hoje estou bem. Mudei tudo na vida, fiquei longe dos amigos. Morei quase um ano em hotel, foi barra-pesada. Tem as coisas boas... O clima é convidativo para o lado de cuidar da saúde. Em Curitiba faz frio pra cacete, ninguém sai pra malhar com 00 C. São Paulo, com os bares abertos até 6 da manhã, complica. Aqui, não, é só happy hour, e no dia seguinte vamos malhar, né? Mas vejo o Rio de Janeiro muito decadente culturalmente. Está muito pobre. Em Curitiba mesmo vejo mais opções. É uma pena o que estão fazendo com o Rio, hoje é quase uma cidade do interior. Se ela existe hoje com alguma relevância é por causa da Globo. E isso tem dois lados: a TV catalisa as pessoas interessantes, elas estão na Globo. Se não estivessem lá, poderiam estar fazendo algo foda na rua, no teatro, em outros espaços. Em Curitiba ninguém fica trabalhando para conseguir entrar na TV. Não é que elas não queiram trabalhar na emissora, mas as pessoas querem, antes de qualquer coisa, produzir coisas interessantes. Quando cheguei no Rio, vi que a Globo era meio que a saída para to-do 
mundo da minha área. Isso faz com que a cidade 
perca uma munição muito forte.

Como você vê a satanização da Globo, acentuada pela polarização política no país? Já foi patrulhado por trabalhar na emissora? É muito engraçado porque as pessoas falam “a Globo” como se fosse uma entidade, uma pessoa, né? Quem é essa senhora, a Globo? Quem é o cara que toma conta disso? Ah, mas vão falar “tem o dono” e tal. Bicho, tenho dois funcionários na minha casa: eu tento mandar neles e não consigo [risos]. Eles fazem coisas que eles querem. E respeito a individualidade deles. Imagina uma empresa com o número de funcionários que a Globo tem. Não existe a Globo, existem várias Globos. Existem várias pessoas ali dentro. Esse papo de querer colocar todo mundo dentro do quadrado ou da gaveta é mais uma redução. É como qualquer imbecilidade que se diga: curitibano é antipático, evangélico é idiota... Você pode acreditar que a Globo tem um pensamento político X, mas você acreditar que todo mundo ali está submetido a esse pensamento é uma redução imbecil. Eu faço a Globo em que eu acredito, e acho que ali tem espaço, bastante espaço até, para essa Globo em que eu acredito. E isso as pessoas têm que engolir: nunca, nunca o pessoal lá de dentro me pediu pra não falar isso ou aquilo, não postar isso ou aquilo. Nunca! Podem se esgoelar aí dizendo que a gente não fala isso porque a Globo não deixa etc., mas eu posso falar o que quiser. Eles podem eventualmente me mandar embora também – é uma empresa, caramba.

Você se manifestava bastante sobre política em redes sociais, mas diminuiu nos últimos meses. O desgoverno do Brasil em vários níveis lhe dá cansaço ou desânimo? Chega uma hora em que cansa mesmo. Ficar batendo em ponta de faca... Me dá uma desesperança total. Aqui nesse país estamos no cada um por si. Beleza, cada um por si, então. Se ninguém quer se juntar, vamos assim. E quem tem se juntado não tem me interes-sado. Eu não quero me juntar com esse pessoal do é preto ou branco. Sempre falei: eu sou dos cinzas, quero conversar, quero diálogo. De maneira educada, quero entender o cara que pensa diferente de mim. Mas quero dialogar com o cara que pensa, não com o que repete palavras de ordem. Acho importante ter postura crítica em relação a si mesmo. Olha aqui, véio, a gente aqui! Olha o que estamos fazendo. Enquanto a gente não tiver essa autocrítica, perceber que estamos todos fazendo cagada, não vai mudar. Enquanto tivermos salvadores da pátria, heróis, tá cagado… A discussão política é muito importante, mas a maioria das pessoas não está discutindo, está só afirmando. Todos têm verdades, só verdades. Eu não tenho. Aí me ofendem: “Ah, você é isentão!”. Então eu sou bunda-mole e eles são chatos, ficamos assim [risos].

Na peça "O grande sucesso", de 2016, que faz uma crítica autoirônica do que é ser bem-sucedido - Crédito: Priscila Prade/divulgação

Um projeto da Globo como o da série Filhos da pátria, de Bruno Mazzeo, com humor meio Monty Python, lhe dá prazer? Sim, e o texto faz exatamente uma autocrítica da gente. Não está falando do “cara lá”. Eu faço um funcionário público correto, português de nascença, mas que vive no Brasil há muitos anos. Ele é honesto, mas acaba adorando a corrupção. Porque a corrupção é um troço que dá prazer pro cara, ele tem recompensa. É como no grande equívoco das campanhas contra a drogas. As pessoas usam droga porque têm prazer. Então é preciso explicar isso. Publicidade burra como a campanha do [prefeito de São Paulo, João] Doria não funciona. “A melhor maneira de sair do crack é nunca entrar.” Caralho, puta que pariu! Pagaram pra alguém escrever isso!?

Você é a favor da descriminalização das drogas? Sou a favor da discussão. A gente ainda não é maduro para simplesmente liberar. Tem que ouvir as pessoas. E não adianta chamar só radicais a favor da liberação. É preciso conversar com religiosos – há alguns inteligentíssimos, que veem as coisas de outra maneira. Eu na verdade não sei se eu sou a favor ou contra. Bicho, 
eu não sei direito o que fazer com meu filho! Tô morrendo de medo de ele virar adolescente. Como é que eu vou sair dizendo o que tem que ser feito no país, na cidade? Eu não sei. Quero aprender.

Você tem uma visão nada romântica do casamento, já externada algumas vezes. O que aprendeu com o seu primeiro casamento [de dez anos, com a atriz Fabíula Nascimento] e aplica no atual? Entrei neste segundo casamento sem romantismo bobo. Sem o romantismo do casamento perfeito, de achar que não vai ter briga, que não vai ter um momento em que um pode querer matar o outro. Estou consciente de que é uma construção diária. Eu fico pensando nesses radicais da política, como é o casamento deles? Pelo visto, eles só ficam casados com quem pensa igualzinho a eles. Esse povo não discorda da mulher? 
As pessoas têm que poder pensar diferente. Eu negocio com a minha mulher o tempo todo, e a gente se entende. Negocio já com o meu filho: ele quer ver desenho, chora; pede pra brincar de carrinho quando eu quero brincar com os violões...

“Comprei meu apartamento tocando na noite! Isso é um puta orgulho pra mim”

A fama lhe atropelou a partir do papel de Comendador na novela Império. Como foi esse atropelamento, como você reagiu ao ter virado repentinamente esse homem irresistível, conhecido nacionalmente? O Comendador me tirou do sério, protagonista de novela – e novela de sucesso! Eu pensei que isso não ia me pegar. E não pegou mesmo no sentido que a maioria pensa: de o cara ficar se achando, “ih, o cara acredita que é irresistível mesmo, que é fodão, vai sair comendo todo mundo, acredita que é bom ator”. Nesse sentido, não. A novidade pra mim foi o assédio, a imprensa, a distorção das coisas. Como gostam de distorcer o que você falou e usar seu nome para ganhar cliques, vender jornal! O assédio das pessoas na rua, de gente que não sabe nem teu nome... Pessoas que te amam alucinadamente do nada, pessoas que te odeiam gratuitamente... Você ouve “eu te amo, morro por você”, ouve “vai tomar no cu, seu idiota”. E fala “caralho, o que aconteceu?”. Tudo vira um negócio muito maior. Isso me pegou, fiquei muito tenso, estressado mesmo. Você convive com gente maluca, gente que manda mensagem todo dia, que manda carta dizendo que vai matar a minha mulher. Quando minha mulher estava grávida, tinha uma que dizia: “Vai perder o filho”. Quando você vê pessoas lhe incomodando no seu espaço físico, ligando pra sua casa, você começa a ficar puto. E pensa “vou matar alguém”, “vou me matar”. Aí, pensa: “Calma, toma um remedinho, vem conversar comigo” [risos].

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Uma droga recreativa pode fazer efeito semelhante ao do remedinho? Ao de uma droga prescrita por um médico? Não, não no meu caso. As drogas recreativas – e já usei muitas – não fazem bem pra mim. Definitivamente, não. É aquela coisa: é booom, mas não faz bem, cara. Acho que as campanhas 
contra as drogas deveriam ir por aí. Eu não sou contra a droga, há pessoas que podem usar e pessoas que não podem. As drogas recreativas podem funcionar, sim, para algumas pessoas. Eu estou falando agora do remedinho porque é uma novidade pra mim. Faz dois meses que tomo. E posso ficar sem tomar e me divertir muito, em casa ou com amigos. O médico diz que ainda nem fez efeito direito. Mas já me sinto bem melhor. Meus amigos todos já tomavam, tarja preta. Eu nunca tinha tomado. Tô me divertindo [risos].

Você já brigou de soco com alguém? Quando foi a última vez? Duas vezes, que eu me lembre. Quando eu era adolescente, tomei uma surra... Eu achava que batia em todo mundo, né? Quando era criança, era mais fortinho, batia bem. E adolescente fui pra cima de um cara e tomei uma surra, bicho, foi linda. Nunca mais briguei. Quer dizer, um dia, adulto, tocando, tinha um músico lá, a gente se desentendeu e quando eu saí do palco eu dei um soco nele. Depois comecei a chorar. Porque o cara era muito meu amigo, me arrependi muito. Eu tenho esses rompantes de agressividade. Tem uns lugares em mim que me dão medo. Um dos motivos que me fez parar de falar sobre política e comentar em rede social foi isso. As pessoas radicais começam a lhe ofender tanto que você fala “pera aí, bicho”. Eu comecei a ficar muito puto e, por isso, parei. Futebol também é outro assunto que leva para esse lado. Eu gosto de futebol, mas parei de torcer pra time por causa da violência. Torci pro Corinthians, mas sempre fui light. Claro que acho política muito mais sério que futebol...

Com João Carlos Martins; e em cena interpretando o artista no filme "João, o maestro", de Mauro Lima - Crédito: Priscila Prade/divulgação

Mas a discussão política em certo momento recente virou um pouco choque de torcidas de futebol, não? Sim, de organizada. Mas no futebol cada um torce por seu time, e é assim mesmo. Na política você tem que dialogar. Se cada um ficar torcendo por seu time, acontece o que estamos vendo. Tira-se o PT e continua-se roubando, mas a pessoa fica feliz, comemorando: “Eu tirei o PT!”. Você pergunta: “E aí, tá tudo bem agora? Era só isso que você queria?”. Essa pessoa é um imbecil. Caralho, bicho, isso me dá uma raiva, cara! [Risos.]

Numa entrevista à Marília Gabriela, na TV, você disse que gostaria ser um velho gordo sem culpa. A questão do peso sempre lhe preocupou? É tão importante? É o meu sonho de vaidade mesmo, poder ser gordo sem culpa. Eu briguei a vida toda com o peso. Sempre de maneira muito saudável, sem tomar remédio nem precisar de cirurgia, sem distúrbio alimentar. Mas brigo diariamente com o peso. Diariamente. Tenho que ficar me patrulhando, me censurando, deixar de comer o que quero. Se deixar, acho que fico com uns 150 quilos. Não é exagero. Eu tenho 1,80 metro e peso 89 quilos. Estou acima do meu peso. Mas já pesei 100 quilos quando tinha 18 anos, depois que perdi meus pais. Eu estava bem depressivão... Eu nunca quis ser gordo, sempre tive minha vaidade. Quando falo velho gordo... Sabe aquele Marlon Brando velho, gordããão? Aquele Elvis gordo? Naquela de “caguei, sou fodão, cês me querem gordo mesmo” [risos]. Eu adoraria isso. Chega lá, Marlon Brando, sem decorar nada, lê as dálias lá, fala o que quer... [Risos.] Minha aposentadoria dos sonhos.

Créditos

Imagem principal: Jorge Bispo

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