Cannabusiness
O neurocientista Fabricio Pamplona adianta quais as seis principais tendências do mercado canábico
Em 2019, pela primeira vez a maconha entrou na lista de conteúdos como uma vertical independente dentro da programação do South by Southwest (SxSw), conhecido por ser o maior evento mundial de inovação. O evento mobiliza 75 mil pessoas, reunidas para participar das cerca de 1.600 atividades realizadas em um período de 9 dias, em Austin, no Texas. As atrações envolvem temas de design, sustentabilidade, cidades inteligentes, mobilidade, criptomoedas, realidade virtual, cinema, games, saúde, tecnologia e tudo o mais que envolve criar o futuro da humanidade. Uma loucura, uma verdadeira sopa de referências que dá uma ideia das principais tendências do que está rolando e do que está por vir.
Aqui, voltei o foco para as principais tendências no mercado de Cannabis, tendo como base minha perspectiva como participante, palestrante e também curador convidado da White Rabbit, em que rolou uma palestra de 5 minutinhos, dentro do projeto Decoding, destinado a mapear os festivais de inovação pelo mundo. Se quiser ter uma ideia do que é o festival, vale muito a pena assistir. Vai lá!. Procure pelos vídeos e vai achar a live publicada no último dia 2 de abril; minha apresentação começa com 2 horas e 19 minutos, mas vale a pena assistir a tudo, foi apenas incrível.
É uma verdadeira overdose de conteúdo e a boa notícia é que foram propostas 700 palestras e apenas 46 terminaram na grade final do evento. Ou seja, ainda tem muuuuito pra se discutir nas próximas edições. Foi uma bela amostragem do que está rolando nos EUA, mas houve proporcionalmente pouco conteúdo de outros países, fica a crítica. Fui o único palestrante da América do Sul, por exemplo.
Os temas tratados podem ser agrupados em três grandes áreas: política/ativismo, tecnologia/empreendedorismo e cultura/branding.
Em política e ativismo, não tivemos muitas novidades. Foram pessoas apaixonadas inspirando os curiosos ainda "não convertidos" e outros mais críticos mostrando sua revolta com a demora na mudança definitiva do status legal da Cannabis no planeta.
Já em tecnologia e empreendedorismo, a sensação clara é de que os negócios estão ficando cada vez mais sofisticados e exigindo que se tenham produtos, serviços e estratégias mais fundamentadas. Os tempos de "dinheiro fácil" com qualquer produtinho já passaram, pelo menos nos países em que já há mercado regulado. Pra entrar nesse segmento não dá mais para simplesmente "plantar maconha e vender a rodo" ou "extrair CBD de cânhamo e vender a rodo". Para se destacar, agora é preciso realmente gerar valor.
Entre os assuntos discutidos, é curioso que o CBD tenha ajudado a maconha a virar um tema da moda e a Cannabis ter se tornado mainstream justamente por conta do bendito "primo pobre", o cânhamo, que roubou a cena da "princesinha".
Top 6 das tendências
Aspectos medicinais da Cannabis a levaram ao mainstream, mas não podemos esquecer dos aspectos ritualísticos, de conexão. A experiência de cura pode ser holística, envolver as pessoas de maneira emocional e espiritual. Essa ótica vem de uma relação mais profunda que certas pessoas desenvolvem com a planta e seus rituais. Há um risco de banalização dessa experiência com a incorporação do THC em "canetinhas" de vaporização e balinhas tipo gummy bear. Há quem não esteja feliz com isso.
As pessoas usam a Cannabis para se sentir bem e ter saúde ao mesmo tempo. Normalmente, pensamos que um remédio é algo ruim, não gostamos de tomar, mas tomamos porque faz bem. A Cannabis tem propriedades medicinais e, além disso, as pessoas gostam. É um misto super curioso entre uma experiência de wellness e, ao mesmo tempo, de tratamento médico.
A ciência tem aprendido muito com a experiência dos pacientes e as grandes inovações no setor dos medicamentos nada mais são do que uma validação em formato de desenvolvimento farmacêutico do que já se sabia a partir das experiências dos próprios pacientes de Cannabis medicinal. E, antes disso, até mesmo das propriedades medicinais ancestrais descritas para a planta. Estamos reinventando o passado.
Apesar da modinha do "CBD", o cânhamo é muito mais do que isso e veio para ficar. Pode-se gerar muitos produtos a partir dele, incluindo plástico, biodiesel, papel, roupa, farinha, proteína, azeite… Há muita coisa boa que pode ser produzida e com alto grau de sustentabilidade. Tudo de cânhamo, tudo legal. Hemp é AGRO, hemp é POP.
Há muitas oportunidades de negócios em torno desse mercado, algumas que sequer envolvem a planta. O nível de sofisticação desse mercado está enorme e há espaço para quem for criativo. Curiosamente, os EUA, que hoje possuem os melhores produtos, as melhores marcas e potencialmente o melhor mercado consumidor , não está aproveitando devidamente essa oportunidade por conta das limitações regulatórias em âmbito federal. Tem gente dizendo que isso muda em breve e, quando mudar, será uma avalanche. Os caras estão ávidos por tomar o lugar de destaque no espaço que hoje é ocupado pelos vizinhos canadenses. Os americanos "deixando dinheiro na mesa" não é algo que se vê com frequência.
No mercado de varejo, são poucos fornecedores, que alimentam uma infinidade de dispensários. Claro que há variedade, mas ela reside em linhagens da planta cada vez mais populares, variedades de óleos e comestíveis. Em geral, é tudo mais do mesmo, e a experiência de compra desenhada pelo varejista faz toda a diferença como diferencial de mercado, e para gerar uma identificação do cliente com a marca.
Tudo mudou
Nada melhor do que o contraste para fazer a gente entender como as coisas mudaram. Mais abaixo, separei alguns exemplos de como as coisas eram (ou ainda são, no caso do Brasil e de outros países ainda estão atrasados) e de como elas ficaram depois da devida regulamentação do mercado de Cannabis.
Ficar chapado, por exemplo, agora virou mood modulation. Antes, a primeira imagem era a figura do hippie com um baseadão como o ícone do uso da maconha de forma recreativa. Esse costume está mudando bastante com a popularização dos vaporizadores e hoje já existem marcas em que você compra o produto escolhendo a experiência que quer ter. O próprio uso da planta in natura está ficando old school. O melhor exemplo disso é o vaporizador Dosist (antigo Humboldt). Você entra no site e escolhe se quer comprar o produto que lhe deixa relaxado, alegre, introspectivo, sonolento e por aí vai. Não é um barato? Acho que estamos apenas começando essa etapa de uma evolução positiva da relação humana com a psicoatividade proporcionadas pelos canabinoides.
No ramo alimentício, sai o brisadeiro, entra a balinha colorida de maconha. Quando se fala em comestíveis, o "tradicional" sempre foi pensar no popular "brisadeiro", ou brigadeiro de maconha, ou no "space cake", com as variações space muffins, space brownies etc. Tudo meio caseiro, remetendo a receitas de vó. Hoje em dia você encontra virtualmente qualquer tipo de alimento infundido com maconha e há inclusive restaurantes especializados nisso. O que popularizou essa cultura foram sem dúvida os "gummy bear". Já existem fornecedores com mais de 100 tipos de produtos diferentes para você escolher como quer chapar.
A própria experiência de compra agora é segura e personalizada. Ao invés da situação terrível de ter que "subir o morro" e comprar maconha com traficantes, frequentemente armados, e ficar vulnerável a toda sorte de imprevisto ou violência, agora você entra no seu dispensário preferido, de acordo com seu lifestyle e escolhe as diferentes variedades ou produtos em um tablet, que vai aprendendo suas preferências e te ajuda a fazer escolhas cada vez melhores e mais personalizadas. O big data, a inteligência artificial e as interfaces amigáveis vieram com tudo para dar um boost na experiência de consumo. Fora isso, os dispensários são verdadeiras concept stores e já existem estúdios de design exclusivamente dedicados a desenhar a experiência de compra para o mercado de Cannabis. É incrível o nível de segmentação em que estamos chegando.
Em tempo: a maconha medicinal é de verdade, chega de "bullshitagem". No início dessa onda de maconha medicinal, os Green Doctors de Venice beach contribuíram muito com o boom do mercado, literalmente vendendo prescrições e carteirinhas de paciente de maconha medicinal a preços acessíveis. É meio ridículo pensar que os caras ficavam na rua oferecendo "consultas expressas" para quem quisesse se tornar paciente. Hoje, o cenário está mudando rapidamente, há um reconhecimento muito maior do uso terapêutico da Cannabis de verdade. Com isso, naturalmente está havendo um distanciamento maior entre os usuários recreativos e os pacientes. Os mercados são diferentes, as abordagens e necessidades de produtos são diferentes e eles tem tudo para se separarem definitivamente. Mas é curioso notar que a Cannabis alivia sintomas de doenças ao mesmo tempo que faz a pessoa se sentir bem. É uma quebra de paradigma interessante na medicina.
O óleo de Cannabis, conhecido como hemp oil, nasceu dos pacientes. Nos EUA, o grande primeiro nome que surgiu no horizonte foi o Rick Simpson, que ensinava a fazer o óleo na internet. Associações de pacientes se organizaram para começar a produzir para seus associados na cara e na coragem, como é o caso da ABRACE aqui no Brasil, por exemplo. Eles certamente contribuíram para a saúde e bem-estar de muita gente e não são poucos os relatos de famílias que são super gratas a essas iniciativas. Contudo, por conta da demanda da indústria farmacêutica formal por inovações, produtos padronizados e devidamente formulados foram introduzidos no mercado e um deles foi registrado no FDA, um óleo de Cannabis bem purificado. A diferença? Bem, esse produto registrado pode ser chamado de medicamento e tem evidências sólidas de que funciona e é seguro. Os médicos sem dúvida preferem esse tipo de chancela da agência regulatória do que os óleos "caseiros", embora o preço costume ser substancialmente maior para quem paga essa conta.
Ao fim, todos os reflexos vão do mercado ao comportamento. Tudo sendo legitimado pela ciência e pelos consumidores, pacientes… Veio pra ficar — e crescer.
Créditos
Imagem principal: Creative Commons