O carro para o país do futuro
Gurgel entrou para a história do país ao inventar o primeiro veículo genuinamente nacional
João Augusto Amaral Gurgel foi um inovador por natureza. Na infância transformou triciclo em bicicleta, na faculdade desenhou carro em vez de guindastes, mas entrou para a história do país ao inventar o primero veículo genuinamente nacional
Moleque, no auge dos 5 anos de idade, João Augusto Amaral Gurgel não se conformava com o fato de as
galinhas que moravam nos fundos da casa ficarem no breu à noite. Não mereciam jantar no escuro.
Encasquetou que era preciso iluminar o canto das penosas, fez a cabeça do irmão menor e pôs em prática o plano de emendar vários fios da tomada da cozinha até um soquete no quintal –– a explosão causou uma balbúrdia entre os bichos, e o irmão levou um choque de arrepiar. O pequeno Gurgel também não pensou duas vezes ao saber que a mãe suspirava por uma mesa entalhada. Simples: com um canivete afiado, cavou a borda do móvel –– e não entendeu muito bem por que o pai o pôs de castigo.
A capacidade de encontrar soluções criativas e a determinação de levar a cabo ideias nada convencionais
foram as principais marcas da trajetória de Gurgel, o criador do primeiro carro genuinamente nacional, que
morreu em São Paulo aos 82 anos no último dia 30 de janeiro. Sem se importar com a força dos ventos contra, nem com o uníssono da torcida adversária, o menino nascido em 1926 em Franca (interior de São Paulo) foi um homem surdo para o que não fosse sua opinião –– e foi assim, obstinado ao extremo, que criou, em setembro de 1969, a Gurgel Indústria e Comércio de Veículos Ltda., prefácio do sonho de construir um carro popular brasileiro.
Sonho que saiu da prancheta e virou automóvel. Nos 25 anos de existência da fábrica montada em Rio Claro (interior de São Paulo) foram concebidos 40 mil veículos. Ipanema –– uma espécie de buggy –– foi o nome do primeiro modelo, criado antes mesmo da fábrica e apresentado no Salão do Automóvel de 1966. “Depois que fundamos a Gurgel, fazíamos um Ipanema por semana. Mais tarde, descobrimos numa pesquisa que o Ipanema estava sendo utilizado em fazendas, como substituto do jipe. Então, resolvi investigar esse mercado”, diz o próprio Gurgel na biografia Gurgel, um brasileiro de fibra (editora Alaúde), escrita pelo jornalista campineiro Lélis Caldeira.
O resultado da pesquisa direcionou os passos seguintes do empreendedor.
Os modelos que viraram sinônimo da marca apareceriam nos anos seguintes: Xavante (jipe com um par de pás afixadas nas portas para salvar o carro da lama e sistema “Selectration”de bloqueio seletivo das
rodas traseiras); Itaipu (o primeiro carro elétrico do Brasil, recarregável em qualquer tomada 220); X-12
(jipe com guincho manual com cabo de aço de 25 m no para-choque dianteiro); BR-800 (primeiro carro totalmente desenvolvido no Brasil, “nossa independência tecnológica”, segundo Gurgel); além do Tocantins, Xef, Carajás, Supermini e Motomachine.
SENA, SENNA E CENA
A originalidade não vinha apenas do design dos modelos. As soluções mecânicas e o uso de novos materiais também foram marcas de João Gurgel. Foi ele quem inventou o plasteel, resistente estrutura formada por camadas de plástico reforçado com fibra de vidro e armação de tubos de aço. A inquietação de sempre buscar o novo rendeu boas histórias na infância. Gurgelzinho sacou que os amigos da rua tinham triciclo, mas gostavam mesmo é de bicicleta. Logo pôs a mão na massa e arranjou um jeito de transformar triciclo em bicicleta –– recebendo como pagamento do serviço a roda que sobrava. E foi com essas sobras que montou seu primeiro carrinho.
Na Politécnica da Universidade de São Paulo, ele também inventou moda. O trabalho de encerramento do
curso de engenharia mecânica-elétrica, em 1949, previa o desenvolvimento do projeto de um guindaste. Mas Gurgel apresentou o Tião, projeto do primeiro carro brasileiro. O professor não aprovou a ousadia: “Gurgel, lembre-se de que automóvel não se fabrica, se compra.”Ele não se abalou com o pouco caso do professor: engavetou o Tião por quase 40 anos até ter a chance, em 1987, de ressuscitá-lo com outro nome: BR-800. Era para ser chamado de Cena, mas a assessoria do piloto Ayrton Senna entrou com uma ação judicial para que o empresário não usasse o nome –– Gurgel acatou, mas deu uma alfinetada, dizendo que Sena já batizava o rio francês havia muito mais tempo do que o piloto.
O biógrafo Lélis Caldeira se envolveu tanto com o perfilado que acabou comprando um BR-800 (1991).
“Depois de escrever o livro, resolvi comprar um. Adoro carro, que sai da garagem estrategicamente aos fins de semana. Às vezes vou de Ribeirão Preto para Campinas com ele”. Um modelo do mesmo ano faz parte de boas recordações da jornalista Marcia Blasques, de 35 anos. “O BR-800 foi o meu primeiro carro. Ele era muito econômico – eu ia de Itapevi (Grande São Paulo) para a USP todos os dias e nos fins de semana ia acampar em Ubatuba com quatro amigas. Foi uma fase bem divertida: o pneu furava a cada três dias, vazava água do teto solar, era sempre uma aventura.”
Depois de formado na Poli, Gurgel viajou para os Estados Unidos e estagiou na General Motors Truck na Coach e na Buick Motor. Lá teve acesso à tecnologia de plástico duro, que se transformaria na “cara” dos seus carros. Retornou ao Brasil, trabalhou na GM e na Ford, de onde pediu demissão para montar o próprio negócio com US$10 mil. Assim, em 1958, montou a Moplast, que produzia luminosos de fibra para várias empresas, principalmente para as agências da Volkswagen. Ao mesmo tempo, com a Mokart, construía karts de competição, que foram pilotados por José Carlos Pace, Wilsinho e Émerson Fittipaldi, futuros corredores de Fórmula 1.
Os custos das corridas eram cobertos pelo Gurgel Junir, um minicarro com motor de 3hp exportado para os EUA e para a Alemanha. Fez ainda carros para crianças: mini-Mustang e mini-Karmann Guia. Ganhava o primeiro que achava a tampa premiada do achocolatado Toddy; já o segundo aparecia nas tampinhas do refrigerante Cerejinha.
ARMÁRIOS AMBULANTES
Quem conviveu com João Gurgel sabe que a fama de polêmico não era conseqüência só de posturas como a que teve contra a política do Proálcool – na visão do empresário, terra era para cultivar alimentos, e não combustível. “Gurgel tinha muita personalidade e era teimoso como poucos. Falávamos que a fábrica precisava de um departamento de estilo e design, mas ele achava que não; que, se vendia os carros daquele jeito, estava ótimo”, conta o designer paulistano Anísio Campos, de 76 anos.
“Gurgel foi corajoso, mas é muito difícil uma pessoa ser ´tudo´: fazer os carros, entender de economia, lidar com política, estética... Eu e o (falecido) Paulo Goulart (da concessionária Dacon) vivíamos brincando com o Gurgel, dizendo que os carros dele pareciam armários.” Piadas à parte, o fato é que mesmo depois de 15 anos do fechamento da fábrica ainda hoje existem os fanáticos pela marca, como comprova o Gurgel Guerreiro – Clube Fora de Estrada, fundado em 2001 em São Paulo. “Senti a necessidade de reunir a galera apaixonada por Gurgel. Montei o site (www.gurgelguerreiro.com) e, de repente, tínhamos encontros mensais de 30 ou mais jipes Gurgel”, conta o presidente Fábio Silva. “Foi muito revoltante como as coisas terminaram para Gurgel, um gênio que não teve o apoio que precisava.”
João Gurgel sofreu por mais de dez anos com o mal de Alzheimer, até morrer em janeiro passado. “Pouco tempo depois da falência da fábrica (em 1994 o governo federal negou um financiamento de US$20 milhões para salvar a montadora) meu pai passou a se desconectar do mundo. Achamos que era sinal de depressão e não associamos esse comportamento ao Alzheimer”, disse a filha Maria Cristina ao jornal O Estado de São Paulo, em maio de 2005. “(Antes da falência), meu pai demorou muito tempo para admitir a gravidade da história. Ele é de uma geração que não divide angústias – não poderia chegar para os três filhos e dizer que estava preocupado. (...) Tenho orgulho de dizer que, se temos um carro econômico hoje, foi por caisa da iniciativa do meu pai.”. Para o biógrafo Lélis Caldeira “se não tivessem acontecido as injustiças que aconteceram com ele, a Gurgel poderia ser tão reconhecida como a Embraer”. ;