Risco na cabeça

Ariel, o barbeiro da zona norte de São Paulo que deixou para trás os dois anos na cadeia e o perigo de virar estatística para traficar influência riscando topetes coloridos

por Nathalia Zaccaro em

Quando Ariel Franco era moleque, a moda era ter o cabelo twister. “A gente passava alisante e depois botava ele todo arrepiadinho. Eu gostava de ter estilo”, lembra. “Não deixava nem passar 15 dias e eu já tava lá cortando e arrumando o cabelo de novo.” Trocando ideia com Ariel hoje, aos 25 anos e dono de uma barbearia de sucesso, dá até pra pensar: o cara nasceu predestinado a ser barbeiro. Mas a verdade é que praticamente todos os moleques da periferia de São Paulo nos anos 90 curtiam ter um cabelo estiloso e se agilizavam como conseguiam para bancar o visual.

Ariel fazia parte de um grupo de uns dez meninos que viviam de rolê pelas ruas da Brasilândia, na Zona Norte. Com 12 anos, eles começaram a arranjar bicos pela cidade. Trabalhavam na feira do Pacaembu, faziam carreto, vendiam Zona Azul. O dinheiro era pra ajudar em casa, comprar roupa e, sempre que dava, fazer o cabelo. Um pouco mais velhos, com 14 ou 15 anos, essa rotina seria transformada pelos riscos comuns da periferia. “Na comunidade, tem muito a influência do crime. E a gente via isso como uma oportunidade. Aí um amigo entrou, aí outro foi entrando, outro foi entrando, quando foi ver, todo mundo entrou pra essa vida. Dos dez do nosso grupo, se ficaram dois fora do crime foi muito”, conta.

"Vejo que sou um espelho para os mais novos e tento ser para eles o exemplo que não tive, para que entendam o que eu não entendi" - Crédito: Alex Batista

Ele passou os anos seguintes trabalhando com tráfico de drogas, até que, aos 19, rodou e foi preso. “Dividia a mesma cela com mais 50. Eu fiquei muito mal psicologicamente, sofri, fiquei revoltado”, lembra. Depois de um ano na cadeia, ouviu o conselho de um parceiro e começou a trabalhar dentro do presídio cortando cabelo. “Era um momento de liberdade, eu tirava minha cabeça daquele lugar. O corpo estava lá, mas a mente estava longe. Comecei a acordar às 8 horas da manhã pensando em cabelo e parava só de madrugada. Todos os dias.”

Em 24 de novembro de 2014, depois de quase dois anos preso, ele foi liberado. “No mesmo dia, lembrei que um amigo tinha uma máquina de cortar cabelo. Pedi emprestada e comecei a fazer penteado na molecadinha, desenhar, pintar. Sempre consegui ser marqueteiro.” Dava fila de cliente na porta da casa dele.

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Para agendar um corte com Ariel é preciso um mês de antecedência - Crédito: Alex Batista

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Não demorou muito para começar a atender em uma barbearia e juntar grana para abrir seu espaço.  “Eu trabalhava de terça a sábado e, geralmente, as festas, casamentos e ocasiões especiais eram no domingo. Os penteados acabavam amassando de um dia para o outro e eu tinha que refazer na minha folga. Aí comecei a pensar técnicas para melhorar isso e desenvolvi o corte blindado”, explica.

A invenção de Ariel é um topete super modelado, multicolorido e “inamassável”. Ele não conta exatamente com qual mistura de sprays consegue o feito, mas comprova sua resistência todos os dias em sua conta no Instagram, @arielbarbeirooficial, com vídeos em que usa martelos, cadeiras e todo tipo de coisa para esmagar os penteados que nunca perdem a forma e já renderam mais de 320 mil seguidores.

É na barbearia dele que a molecadinha de hoje da Brasilândia se reúne pra cortar o cabelo ou simplesmente se encontra e troca ideia em um dos lugares mais famosos do bairro. Lá, aparece gente de todo canto querendo “blindar” o cabelo, ouvir as histórias do barbeiro ou fazer um stories no Instagram e pegar uma carona na fama de Ariel, que já participou de programas de televisão e foi sondado recentemente por gente que está querendo transformar sua biografia em livro e filme.

Gustavo Rodrigues, 14 anos; Mateus Correia, 13 anos - Crédito: Alex Batista

“Minhas fotos que fazem mais sucesso no Instagram são as do cabelo blindado”, comemora Gustavo Rodrigues, 14. Para ele, é sinal de moral ser do mesmo bairro que Ariel e ostentar um topete original da Brasilândia. “É inacreditável. Pessoas que nem olhavam na sua cara falam com você. E é legal também porque vejo uns youtubers famosos falando sobre a zona norte, sobre meu bairro. Só tem aqui, lá na Leste não tem, por exemplo”, conta.

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Maicon de Lima, 10, também é vizinho da barbearia e já fez o blindado várias vezes. “Sempre que minha mãe pede pra eu comprar alguma coisa na rua, eu aproveito pra passar aqui, fico conversando, mesmo quando não vou fazer o cabelo”, conta. Caique Marques, 6, veio da Freguesia do Ó e aproveitou para gravar um alô para os (ainda poucos) seguidores de seu recém-lançado canal no YouTube. “Eu vi na internet sobre o Ariel e deu vontade de fazer. Acho que meus amigos vão gostar! Quero ficar 1 milhão de dias com o cabelo assim”, disse.

Pietro Macedo, 5 anos; Maicon de Lima, 10 anos - Crédito: Alex Batista

A beleza é fundamental

O blindado é a assinatura particular de Ariel para um fenômeno que, na verdade, é mundial. “Os cortes de cabelo que estão na moda nas periferias de São Paulo também estão na moda em Londres, Paris e Atenas. Não é o corte do príncipe Harry que inspira as periferias, mas dos jogadores de origem africana e árabe do Paris Saint-Germain ou do Arsenal, que são vistos, imitados e reinventados. Essa estética é global, ditada sobretudo pelos ícones esportivos e da indústria cultural”, explica o sociólogo Gabriel Feltran, que escreveu, em parceria com Giordano Bertelli, o livro Vozes à margem: periferias, estética e política.

Há algumas décadas, os jovens das periferias não tinham tantas referências de beleza em seus contextos. “O efeito disso, e de muitas outras coisas combinadas, é a ideia de uma subordinação daqueles que se parecem comigo. Os outros, que não se parecem comigo, é que seriam bonitos. Agora, tanto no Brasil, como no exterior, os que se parecem comigo também são muito bonitos”, explica Feltran.

Caique Marques, 6 anos - Crédito: Alex Batista

O rompimento entre o que a elite considera belo e o que as periferias defendem como estética própria é, por si só, revolucionário. “O hip-hop, o brega, e o funk são também expressões estéticas das periferias que não cabem naquilo que as elites esperam dos pobres: que sejam invisíveis, bem comportados, civilizadinhos. A estética popular – inclusive a evangélica – demonstra que os pobres não necessariamente querem ser como as elites e as classes médias e que têm outro projeto de mundo”, conclui o sociólogo.

O documentarista e antropólogo Emílio Domingos acompanha de perto a relação entre estética e identidade das periferias cariocas. Em 2017, ele lançou o filme Deixa na régua, em que registrou a rotina das barbearias da zona norte do Rio de Janeiro. “São espaços em que existe uma sensação de pertencimento muito forte. Os barbeiros adquirem status porque conseguem uma grana acima da média da favela. O fato de eles terem um pouco a personalidade de artista, de criador, também interfere”, conta.

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De volta à Brasilândia, Ariel tem muita clareza ao se perceber nesse lugar de inspiração. “É como um jogador de futebol: quando ele é revelado da região onde mora, marca aquele lugar. Graças a Deus, eu consegui representar mesmo a minha comunidade. Ouço as pessoas falarem: ‘Eu sou da Brasilândia, a região do Ariel’. Acho que não tem sensação melhor no mundo. Vejo que sou um espelho para os mais novos e tento ser para eles o exemplo que não tive, para que entendam o que eu não entendi”, diz.

"Ouço pessoas falarem 'Eu sou da Brasilândia, a região do Ariel'. Acho que não tem sensação melhor no mundo" - Crédito: Alex Batista

Para além do carisma e da história de superação de Ariel, que já sonha com uma rede de franquias com seu nome, seu exemplo é poderoso porque é palpável. Barbearias são negócios rentáveis, populares, que exigem pouco capital inicial. “Nas periferias, há muitos empreendimentos novos tentando se firmar. Os salões de beleza, cabelo e barba estão entre os mais comuns porque todo mundo precisa e não exige grande investimento. Isso fez com que eles se multiplicassem. Com a grande concorrência, diferenciaram seus produtos para atrair o público e hoje se pode fumar narguilé, tomar cerveja e assistir futebol na barbearia”, explica Feltran. Ou blindar o cabelo com cores néon e ainda sair de lá com um vídeo surreal em que um carro atropela seu inabalável topete (e ganhar mais alguns seguidores).

Nem sempre menos é mais, como gosta de pensar a elite cool e refinada do país. Às vezes, more is more. Mais cor no topete, mais dinheiro no bolso, mais likes, mais seguidores, mais representatividade, mais voz. Os moleque é zica.

Créditos

Imagem principal: Alex Batista

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