Vivos, porém exaustos
O que tive foi uma intoxicação de realidade. Infectada pelo noticiário, deixei de perceber os avisos que meu corpo estava me dando
Tudo começou como uma gripe forte. Febre alta, nariz escorrendo, dor no corpo. Depois de dois dias sofrendo sozinha em casa, a rede de ex-mulheres começou a funcionar. Trata-se de uma característica muito sapatão: ex-mulheres quase sempre ganham status de porto seguro e passam a existir num ambiente que é só delas porque é formado por amor – e não mais por tensão sexual –, por amizade e por um tipo de conhecimento que apenas aquele ser humano possui a seu respeito. Eu chamo de sapatoridade. Assim, enquanto uma ex-mulher me recolhia em casa, a outra ia até a farmácia comprar remédios. Na ponta mais extrema do afeto, minha mãe abria as portas para eu entrar e me atirar na cama.
Na casa dela, tendo que assistir aos programas que ela assiste – o canal da TV italiana, a RAI, basicamente –, ia sendo alimentada de meia em meia hora. Maçã, banana, torradas, chás, macarrão, grão-de-bico: o menu da recuperação. Como gosto de entreter um certo teor dramático em mim, qualquer gripe me leva a acreditar que estou às vésperas da morte. Portanto, como achei que iria morrer naquela noite, decidi dormir na cama de minha mãe, uma aventura que eu talvez tenha experimentado pela última vez há 40 anos, o que me deixava despreparada para os hábitos noturnos da mulher dentro da qual um dia morei.
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Por volta das 3 horas da manhã, sem conseguir respirar direito, acordei. Notei que a TV estava ligada e minha mãe, encostada na cama, mastigando. Ao me perceber alerta, ela disse:
— Amendoim. Quer?
— Hã?
— Amendoim. É ótimo para a saúde. Come – disse, estendendo
o saquinho em minha direção.
— Mãe! Você come amendoim de madrugada?
— Nem sempre. Normalmente, como chocolate. Tem ali no
armário. Quer?
— Não, não quero chocolate. Nem amendoim.
— Chocolate com castanha.
— Mãe!
— Você que sabe. Tô vendo o programa do casal que teve cinco
filhas gêmeas. Já viu?
— Não tá na RAI? – perguntei assustada, percebendo que ela
tinha mudado de canal.
— Não.
— Sua TV tem outro canal então?
— Engraçadinha.
— Você não dorme?
— Durmo. E acordo. Depois durmo. É assim.
Passados cinco minutos, ela estava roncando e eu, acordadíssima, vendo o programa do casal que teve cinco filhas gêmeas. Na manhã seguinte, ela entrou no quarto com uma torrada e disse:
— Vamos tirar sua pressão? Eu tenho um aparelho digital.
Muito fraca e sem condições de questionar os motivos do convite, disse ok. Ela veio então com o aparelho e o colocou no meu pulso. Concentrada, apertou alguns botões e sentou. Em segundos, vi a expressão em seu rosto mudar.
— Sua pressão tá 16 por 9!
Tentando não desmaiar de nervoso, perguntei o que isso significava, mas ela estava ocupada ligando para o médico e não escutou. Entendi que era esse então o dia da minha morte e busquei palavras bonitas que pudessem ser ditas, só que não tive tempo de elaborá-las porque minha mãe me arrancou de casa para me levar ao consultório do geriatra dela. Chegamos e entramos imediatamente. O médico, ao contrário da gente, bastante calmo, tirou minha pressão e constatou que estava normal.
— Adele – ele disse para minha mãe –, que aparelho você usou
para medir a pressão da sua filha?
— Esse – respondeu minha mãe, colocando o aparelho na mesa.
— Me faz um favor? Joga fora esse aparelho – pediu o médico.
Enquanto eu tentava me recuperar da experiência, os dois conversavam sobre a incrível saúde de minha mãe, cujo organismo, com 82 anos, não dá muitos sinais de desgaste.
Renascimento
Na saída, ainda no elevador, minha mãe me disse:
— Sabia que ele me garantiu mais dez anos de vida?
— Que ótimo. Porque eu quase morri hoje graças ao seu aparelho
de medir pressão.
— Ah, que bobagem. Já era mesmo hora de você dar um pulo no
geriatra. Sejamos realistas, minha filha.
Como nada se compara à sensação de driblar a morte, tentei manter o foco na euforia do meu renascimento.
Naquela noite, resgatada da casa de minha mãe por minha mulher, que mora no Rio e veio me ver, iniciei o processo de recuperação do que talvez tenha sido uma virose de sintomas muito malucos que me tiraram de jogo.
“A solução para esse período de trevas talvez seja olhar para dentro. Porque só assim faremos contato com alguma sanidade”
Milly Lacombe
Passado o susto, entendo que o que tive foi uma intoxicação de realidade. Infectada pelo noticiário, deixei de perceber os avisos que meu corpo estava me dando, implorando para que eu parasse e tentasse encontrar algum silêncio, algum ambiente de paz e de esperança em mim. A sabedoria de nosso sistema imunológico, que não tem tolerância para organismos incapazes de colaborar, caberia bem à sociedade. A colaboração é uma lei da natureza, a competição é uma anomalia. Exatamente por isso, inundados de um sistema que ensina que competir é natural, passamos pela vida incentivados a olhar apenas nosso umbigo. É como tão bem explicou o escritor David Foster Wallace: “O mundo jamais o desencorajará a operar na configuração padrão. Porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. Nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos”.
Olhar em volta e perceber que as coisas estão desmoronando pode ser desalentador. A solução para esse período de trevas talvez seja olhar para dentro. Porque só assim faremos contato com alguma sanidade. Estamos aqui para ajudar uns aos outros a passar por essa experiência humana, mas só faremos isso se nos mantivermos sãos. Estamos aqui para oferecer afeto, para colaborar, compartilhar e amar. Que exista possibilidade de vida em um planeta perdido no cosmo é um completo milagre. Contra todas as improbabilidades, nós existimos. E contra todas as opressões, resistimos. Não há, de verdade, alternativa a não ser buscar sanidade, dar as mãos e persistir.
Créditos
Imagem principal: © Beijing Silvermine / Thomas Sauvin