Luiz Alberto Mendes: 'Não sou novela pra ser acompanhado'
Desde que saí da prisão, quiseram fazer de mim um modelo a ser seguido. Mas eu não podia aceitar ser exemplo de nada
Somos obrigados a uma imagem social que só tem a ver com os valores eleitos socialmente, diferente da realidade existencial, que quase sempre é bem outra. Alguns cantam, outros chutam bolas, outros ainda escrevem e tem quem desfile. Transformam-se em ídolos, símbolos, fábricas de dinheiro, e têm suas imagens veiculadas pelos quatro cantos do mundo. Nós, as pessoas comuns, os seguimos e queremos ter algo que se assemelhe à imagem de sucesso difundida. Corpo, cabelo, excentricidades, roupas, dança e maneirismos são venerados e imitados até virarem moda. Em seguida viram modelos de conduta a serem copiados. É onde a corda aperta e a coisa pega.
Desde que saí da prisão quiseram fazer de mim um modelo a ser seguido. Parecia lógico: se eu consegui vencer as barreiras, os obstáculos, e chegar aonde cheguei (não é quase nada, mas vivo bem e livre), qualquer outro preso seria capaz. Se eu, que já matara até dentro da prisão, que chegara a somar mais de cem anos de condenações por crimes e roubos, conseguira, por que os 201 mil presos do estado não conseguiriam? Mas eu não podia aceitar ser modelo de nada. Possuía pés de barro e teto de vidro; não podia assumir tamanha responsabilidade. Já pensou se falho? Até onde sei, ninguém parou de errar só porque o elegeram modelo de alguma coisa. Errar, assim como acertar, é parte da condição humana.
Não aceito ser modelo porque é falso dizer que eu mudei, que me transformei ou algo que o valha. Não mudei nada. Sou a somatória de todos os meus erros, fracassos e de minhas poucas e quase esquecidas vitórias. Eu apenas cresci, progredi, ultrapassei erros grosseiros, venci mesquinharias antigas e tentei me fazer melhor sem deixar de ser eu mesmo.
Não há nenhum heroísmo em cumprir mais de 30 anos de prisão. Não fui um exemplo a ser seguido de modo algum. Eu apenas fui dando continuidade à minha existência. Só isso. Como fazer senão aguentar? Não havia alternativas. Grades, muralhas e homens armados impediam qualquer outra opção. Bem que tentei fugir muitas vezes, mas não deu muito certo. Cheguei a ser baleado quando já estava em cima da muralha para descer. Suicídio? Nem pensar. Não possuía coragem para renunciar ao que o futuro me reservava. Forcei todas as barras e lutei em todas as frentes de batalha para chegar ao que estava por vir. Nada mais fazia sentido. A libertação física foi apenas uma das muitas consequências. Houve outras, exatamente aquelas que me fizeram permanecer o que sou e onde estou.
Ninguém é normal
Não sou novela para ser acompanhado. Não quero ter sob minha cabeça a espada de alguém que me siga. E, também, venhamos e convenhamos: seguir o que, não é verdade? Vendo aqueles que são seguidos, não me agradaria estar no time deles. Encontrei pessoas admiráveis, cujo exemplo tento seguir com toda minha precariedade. Mas, ao conviver com algumas delas, a decepção foi acachapante. Então senti na pele o que dizia Caetano: de perto ninguém é normal. Todos nós, por melhores que sejamos, ainda assim temos algum desequilíbrio. O ser humano é triste. E exceções como Mandela, Gandhi, Martin Luther King, Albert Schweitzer e alguns poucos outros parecem que são apenas para confirmar a regra. Depois, quem colocaria a mão no fogo com relação ao cotidiano, à intimidade desses grandes seres humanos?
Há quem diga que foram os grandes homens que impulsionaram e fizeram a história da humanidade. Não creio. Hoje os símbolos podem ser fabricados e as imagens, transformadas por profissionais da mídia. Do nada um ilustre desconhecido pode ser visto como uma celebridade. Com as imagens e os símbolos assim plásticos, fluídicos, manipuláveis e rapidamente transformados em mercadorias de compra e venda, creio que, finalmente, estamos chegando ao fim dos modelos.
*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail élmendesjunior@gmail.com