Nosso futuro não é novo
Pensar apenas o amanhã aliena o presente; pensar somente o hoje hipoteca o futuro. O que fazer?
Quanto mais nos aproximamos da verdade acerca de nós mesmos, mais desejamos nos afastar dela. Porque nos machuca, fere fundo demais saber o quanto somos frágeis, carentes e limitados. Quanta “sorte” tivemos até agora de ninguém perceber nossas fragilidades e se aproveitar delas! Ledo engano. Os outros sabem, sim, o quanto somos fracos e metidos a ser o que imaginamos ser. Eles nos acompanham assim como nós os acompanhamos, e, assim como sabemos deles, eles sabem de nós. Apenas não podem perder o precioso tempo deles conosco. Imagine! Estão atentos a inventar e protagonizar o personagem da história com o qual enganam a todos.
É necessário que alguma coisa nos falte ou aconteça, talvez um forte apelo à nossa humanidade ou algo que deveria estar, mas não está, nem sabemos o que seja. Uma perda irreparável, talvez uma doença, fracasso ou desemprego (o maior de todos os medos atuais). Há muito o que pensar e um esforço sobre-humano a realizar dentro e fora de nós. Precisamos ultrapassar velhos limites e nos vencer.
Recentemente extraí um nódulo cancerígeno do fígado e estou sob rigoroso tratamento contra o vírus da hepatite C. São oito comprimidos diários. As reações são parecidas com as da quimioterapia. Tontura, vômito, falta de apetite, falta de sono, dores horríveis e não posso tomar analgésicos, desorientação (outro dia nem sabia quem eu era, em um supermercado), tristeza, depressão e até inclinação ao suicídio. Ontem fui atendido pela médica que acompanha o meu tratamento no Hospital das Clínicas. Ela chegou fazendo uma pergunta que era mais uma afirmativa. Eu devia estar cansado, dizia ela. Respondi que não me sentia assim: estava bem. Ela disse que havia dito aquilo porque meu exame de sangue recente indicava deficiência de ferro. Eu estava sofrendo de anemia. Respondi que não estava me sentindo assim, pois havia ido à academia no dia anterior e ralei até não querer mais. Sentia-me disposto e forte como um touro, apesar dos meus 64 anos.
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Desfazer fazendo
Ao sair do consultório, já comecei a pensar em minha resposta. Sim, eu tinha que fazer um esforço maior que antes, mas havia completado todas as séries a que havia me proposto e nem sequer percebera. A força de vontade, mais uma vez, havia se provado imperiosa. O futuro parece estar nascendo já velho. A vontade humana, essa capacidade de querer além do que há, vai sendo mecanizada, institucionalizada e dirigida. George Orwell, em 1984, levantou a tampa da privada ao descortinar acontecimentos do futuro, através da lógica dos possíveis. O futuro parece ter menos cartas marcadas do que antes do postulado relativista de Einstein. Hoje ele me parece muito mais líquido do que como quer o finado grande mestre Zygmunt Bauman. Água estagnada, em avançado processo de putrefação. Nada mais é respeitado pelo relativismo. Mesmo por isso temos uma sociedade completamente mutante, em que não existem mais lideranças, ideais ou permanências.
Na verdade, o futuro não é novo e não é velho. É antes um desfazer, fazendo com mais inteligência; um desconstruir, construindo com mais perícia. Pensar apenas o amanhã aliena o presente; pensar somente o hoje hipoteca o futuro. O que fazer? Pensamos o amanhã qual fosse uma divindade a ser cultuada. Pensamos o hoje como se não houvesse amanhã. Não há certezas, é preciso entender isso, mas há probabilidades. As probabilidades é que determinam e por elas podemos nos dirigir.
De verdade o futuro não passa de um interminável presente que não acaba nas 24 horas do dia. É a arte do derrotado que se levanta até vencer, “nem sempre ganhando, mas sempre aprendendo a jogar”. Daquele que perde e prossegue novamente, sempre, sem parar.
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