Exame de fezes
Sem medo de fazer merda, o colunista nos leva a uma reflexão sobre o que temos a aprender com o cocô nosso de cada dia
Caro Paulo,
Nesta edição dedicada à alimentação, peço licença para usar a última página para falar do que acontece depois que a gente se alimenta.
Antigamente, lá em Minas, quando alguém estava no banheiro fazendo cocô a gente dizia que “a pessoa estava obrando”. Estava produzindo uma obra. Obra é o que produzimos com o que aprendemos, certo?
O meu indispensável amigo filósofo, poeta e artista plástico José Ernesto Bologna, um dia escreveu um haikai sobre o artista e seu trabalho:
“sobre a sobra, sobra a obra”
Essas duas referências aparentemente desconexas, obra-cocô e obra de arte, falam do que fazemos com o alimento que tomamos do mundo. Para fazer essa conexão, precisei entender que a nossa identidade não existe de maneira isolada e que a interação com o mundo é o que nos mantém vivos, com saúde e em desenvolvimento.
A idéia é tão simples quanto comer, digerir, fazer cocô, comer de novo, digerir de novo e fazer cocô de novo. Isto é, a vida como ela é: um ciclo de interação permanente que garante saúde ao nosso corpo e a todo o sistema ao qual a gente pertence.
Não tem segredo: você come um tomate, parte dele vira você e o que não vira você é colocado para fora do seu corpo em forma de cocô – a obra –, que vai alimentar a terra, que por sua vez vai produzir mais tomate para você comer.
O artista também vive as emoções que o mundo lhe proporciona e que o transformam num artista; o que sobra é a sua obra, que vai alimentar o mundo, as pessoas que aprenderão, se emocionarão, se transformarão com seu quadro, sua música, sua arte.
Talvez até seja por isso que quando um artista vai entrar em cena para representar uma peça ou fazer um show se diz “merda!”, para lhe desejar sucesso. Como se ele fosse obrar, entregar sua obra para o mundo.
Sem essa entrega/interação, o alimento que nos dá vida, ao contrário, nos envenena.
Assim: quando o tomate não vira Ricardo e eu me nego a colocar para fora o tomate que não virou eu, isto é, quando não volto para o mundo o alimento em forma de Ricardo nem devolvo o que não me pertence, quando não entrego ao mundo a minha obra; nessa hora, estou interrompendo um ciclo vital que vai afetar minha saúde em todos os seus aspectos.
Porque quando não obramos e retemos dentro de nós o que devemos ao mundo, nos envenenamos, nos enfezamos, ficamos cheios de fezes.
A alimentação não é uma atividade de mão única. Todo alimento tem o sentido de viabilizar você, e você, por sua vez, tem o sentido de viabilizar alimento para o outro, para o mundo continuar alimentando você.
A lição é dura, mas necessária: interromper esse fluxo em qualquer instância da vida nos leva à doença, nos deixa pesados e de mau humor, nos faz ver o mundo enfezadamente e tratar a vida como se ela fosse uma ameaça, uma “merda”.
Quando digo qualquer instância, quero me referir a todo isolamento, a toda interrupção de interação: uma pessoa que pára de entregar afeto para a outra, um executivo ou um departamento que não passa informação para o outro, um corpo que pára de transpirar quando o ambiente esquenta, uma empresa que não ouve e não responde seu cliente, um filho que não fala com o pai, um milionário que não constrói nada com seu dinheiro, um artista que não cria com seu talento.
Porque a vida é fluxo, é interação e não importa o tamanho de sua obra, ela é vital para a sua saúde e a saúde do sistema.
Imagine se toda a humanidade obrasse direitinho e desse o devido valor ao seu cocô, à sua obra. Teríamos o permanente fluir de todos os recursos necessários para a vida acontecer no seu melhor, com leveza, bom humor e confiança.
Confiança que existe somente porque sabemos que somos nós mesmos que alimentamos o mundo que nos alimenta.
Por falar nisso, está na hora de o mundo me alimentar.
É domingo, duas da tarde e estou morto de fome.
Entrego a minha obra. Bom apetite. Boa digestão.
E deixo o abraço do amigo que se sente íntimo o suficiente para não ter que pedir desculpa para falar de cocô.
Ricardo.
*Ricardo Guimarães é sócio fundador da Thymus.
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