Elsa, minha paixão angolana
Voltei de Angola com o bolso vazio, um nó na cabeça, uma pedra no coração e uma paixão
A mistura de tanta beleza e tanta miséria era um afrodisíaco irresistível. Voltei de Angola com o bolso vazio, um nó na cabeça e uma pedra no coração
Ela me marcou profundamente. Há 14 anos penso, falo ou escrevo sobre ela quase diariamente. Nos conhecemos em 1996, em Angola, onde eu estava gravando um documentário sobre as vítimas da guerra civil que destruiu o país. Eu tinha 35 anos e a Elsa, 18. Ela era muito, muito gostosa e também muito, muito pobre. Nasceu e cresceu num fétido acampamento de refugiados em Luanda. A mistura de tanta beleza e tanta miséria era um afrodisíaco irresistível e logo sua vida trágica virou o foco do meu filme. Um dia tomei coragem e a convidei para jantar. Ela disse que adoraria sair comigo, mas que todas as suas roupas eram trapos e tinha vergonha de se apresentar malvestida. Fiquei feliz em poder comprar um vestido para Elsa. Nossos olhos se encontraram no espelho da loja, e ela sorriu para mim com uma boca grata e safada. Virou e me deu um beijo inesquecível. Fomos direto para o meu quarto no hotel, cuja diária custava mais do que dois salários mínimos angolanos.
As primeiras semanas foram maravilhosas, mas o tempo foi revelando que, tesão à parte, o que nos unia de verdade era sua enorme carência de bens materiais e minha vaidosa e patética vontade de ser herói. Ela não parava de pedir que eu comprasse tudo, sem a menor noção de limite. Mas ela realmente precisava de tudo. O problema era que eu me ofereci como salva-vidas, mas nem sabia nadar. Comecei a me sentir usado. A coisa acabou em desastre. Voltei de Angola com o bolso vazio, com um nó na cabeça e uma pedra no coração. Nunca mais a vi.
CATIVEIRO SEXUAL
Anos depois li no jornal The Guardian um artigo do escritor americano Paul Theroux. É o fascinante relato de um encontro seu no Maláui com uma mulher muito pobre e seu irmão delinquente. Os dois embebedaram o americano e, para desfrutar de seu dinheiro, o levaram para um barraco de favela – um cativeiro de sexo, álcool, sordidez e nada mais. Depois de três dias Theroux acabou fugindo, sem nem ao menos saber nome dela.
Por anos tentei, sem conseguir, adaptar esse artigo a um roteiro de longa-metragem. A história me fascinava, mas não conseguia aceitar a misantropia, o niilismo de Paul Theroux. Talvez porque me sinta mais perto de Luanda do que de Chicago. Talvez porque eu seja muito romântico. O certo é que recentemente, lembrando da Elsa e de toda a confusão que senti me apaixonando por ela, decidi reviver nossa aventura na ficção.
A história se passa na Zâmbia, um dos países mais pobres do mundo. Os dois personagens principais se encontram num vilarejo miserável a poucos quilômetros da capital, Lusaka. Ele é Paul, um americano cinquentão, acadêmico falido, solitário e alcoólatra. O trabalho de professor numa escola primária na África é a ultima chance para uma vida naufragada. Ela é Precious, zambiana, bem mais jovem e muito linda. É operária de uma indústria têxtil, mas a mixaria que ganha mal dá para alimentar sua família, que sobrevive na maior indigência.
Será que Paul não é para ela só um meio de salvar sua família? Será que Paul também não a está usando? O sentimento de pena não é sempre uma forma velada de vaidade? Será que o amor romântico não é, por definição, prostituto e egoísta? Existe um outro amor altruísta e absoluto?
Imagine dois flagelados se encontrando à beira de um abismo. No afã de sobreviver eles se agarram desesperadamente no corpo um do outro. Imagine que ninguém consegue salvar ninguém. Mas imagine também que a disposição e a coragem de encontrar o outro, apesar de todas as diferenças, fazem com que os dois sobrevivam e descubram, em si mesmos, um enorme amor e uma renovada vontade de viver. Imagine que quase sempre a estrada vale muito mais a pena do que o ponto final.
*HENRIQUE GOLDMAN, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br