É tudo verdade
Poucas vidas parecem tão excitantes quanto a da fotógrafa americana Autumn Sonnichsen
Poucas vidas parecem tão excitantes quanto a da fotógrafa americana Autumn Sonnichsen, que passa seus dias entre diferentes cidades do mundo clicando, entre outras coisas, mulheres apaixonantes. À sua maneira, absolutamente única, Autumn transforma coisas simples e situações prosaicas em pequenos deleites altamente excitantes. Segue o cardápio da semana...
São Paulo. Sábado. 12:43. Vou contar uma anedota relacionada a esta imagem (à dir., acima). Faz dois meses, estava na minha bike a caminho da Trip para fazer uma reunião com a produção da revista, o KL Jay e a filha dele, Kamila. E daí, fui atropelada por um ônibus. Tive sorte porque o meu amigo Luiz, médico e super-herói, chegou a pé mais rápido do que a ambulância e me resgatou. Dois dias depois, eu estava com o braço engessado com a Kamila nua na minha frente. Tudo isso para contar que agora eu sou obrigada a fazer fisioterapia. E essa moça de olhar doce é a doutora que está consertando meu braço. Aqui ela está no heliponto do prédio do consultório dela. Ela tem dedos mágicos, conhece o corpo humano por dentro e por fora.
18:46. Esta é a Erica, videomaker e a minha musa mais eterna de todas. A primeira e de sempre. André também, o sujeito feliz com os queijos ao lado dela, marido da musa. Ele foi o meu primeiro amigo no Brasil, quando cheguei aqui, mais de oito anos atrás. É o meu parceiro de rolê nos bailes funk, nos terreiros de candomblé e nos morros do Rio de Janeiro. Nós três, junto com a Bianca, que estava fazendo mudança, formamos o grupo mais foda de todos: o Lucky Bastards Inc. Temos todos uma tatuagem da firma no antebraço, na veia (menos a Bianca, que nunca pode ser igual a todos e mandou colocar a dela no peito, no coração).
Voltei para São Paulo há dois dias, com a mala cheia de queijos fortes, linguiças de fígado, geleias de framboesa e chocolates apimentados. Tem mulheres que compram sapatos, eu compro apetrechos para piquenique. Comprei tudo às pressas, antes de sair pro aeroporto, na loja que vende essas paradas todas embaixo da minha casa em Berlim. Outros detalhes da foto que me deixam absurdamente feliz: o design puro do copo americano, os talheres que minha mãe me deu de presente, a manta que comprei no Cairo dez anos atrás, o céu com nuvens que não chovem, a laje do meu predinho em São Paulo, o sorriso da Erica quando toma espumante, morangos marinados em Grand Marnier, e as luzes da minha cidade escolhida.
20:45. A gente chamou o Gonzo e a nova namorada dele, Marie, para comer na laje, mas, como sempre, eles estavam fazendo sacanagem e chegaram duas horas atrasados. Apesar do frio, a Marie chegou de vestidinho com a tatuagem nova à mostra, essa da moça amarrada, ainda no Magipak. Não tem coisa melhor do que uma moça feliz com a tinta nova no corpo.
Domingo. 13:00. A alegria dos meus domingos paulistanos: correr no Minhocão. Mar de prédios, mar de amor.
14:25. Da janela do táxi, vejo as cores em São Paulo que mais amo. O taxista para no farol, eu tiro uma foto e seguimos.
21:47. Luiza e Talitinha. Fui madrinha de casamento dessas duas, uma honra da qual eu me orgulho muito. Talita é a magnata de bicicletas da zona leste paulistana e Luiza é a dona dos peitos mais bonitos da cidade. Foram me fazer uma visita lá em casa, se deitaram na minha cama e acabaram com o restante de queijos da minha geladeira.
Segunda-feira. 16:15. Senhor Hirama. Um homem doente pelo São Paulo Futebol Clube, diretor de arte das coisas mais finas, e dono do coração de uma moça linda que já se fantasiou de faxineira francesa no ensaio da Nathalia Rodrigues que o Bob Wolfenson fotografou tão lindamente para a Playboy. Apesar de eu gostar muito da companhia dele, ele sempre me leva pra tomar café nuns lugares muito coxinhas.
Terça-feira de fantasia. Na real, passei o dia no avião. A Mari, esta linda, era pra chegar na minha casa antes de eu ir embora pra tomar um chá comigo, me contar as novidades e fazer ioga. Mas, para a minha infelicidade, ela ficou doente após dar um workshop de pole dance o fim de semana inteiro, e ficou na cama debaixo das cobertas mandando selfies para mim. Ela não vai gostar se eu exibir as fotos de celular que ela mandou, então mostro o último retrato dela que eu fiz no mês passado, assim vocês entendem o quanto ela é foda, e o quanto eu me empolgo com a presença dela na minha vida.
Casablanca. Quarta-feira. 20:00. Depois de 10 horas de voo, na fila entediante do controle de segurança, vejo uma moça atrás de mim com uma cintura finíssima, ombros fortes, e cabelos até o bumbum. A mala dela quebra, e eu tenho Silver Tape na minha mala de equipamentos e com isso eu salvo o dia dela. Descubro que a moça se chama Cris, é espanhola, não visita a família há três anos, faz massagem ayurvédica e dá aula de ioga. A irmã dela mora em Casablanca, e elas me dão uma carona até a cidade. No banco de trás está uma amiga delas com uma boca carnuda, uma artista plástica madrilenha que me mostra no celular os trabalhos lindos dela feitos em aquarela.
21:35. Meu amigo Munir, um cineasta que, por sorte, está na cidade ao mesmo tempo que eu para filmar um comercial de um chocolate marroquino, me leva para jantar e diz que estou proibida de fotografar naquele restaurante, frequentado por homens de negócios e suas amantes. Alguém iria brigar comigo se eu saísse tirando fotos por ali. É um dos lugares que mais me espantaram na vida. As mulheres todas novinhas com maquiagem pesada nos olhos de amêndoas, todas com salto alto e andando torto, dançando música pop do Egito com movimentos sinistros. Os homens todos enormes e barrigudos, fumando um cigarro atrás do outro, tomando vinho branco e falando alto. Parece uma cena de filme. Tiro uma foto do Munir, que está no seu 18º telefonema da noite. Todas as pessoas que eu conheço falam mal de Casablanca, mas falam mal do mesmo jeito que falam mal de São Paulo, e eu amo São Paulo mais do que tudo, então me sinto bem na cidade. Tudo parece cenário de filme, com um ar decadente, meio art déco.
Quinta-feira. 2:10. Pegamos um daqueles táxis vermelhos que parecem caixas de fósforos de volta para o apartamento. Eu e Albrecht, diretor de fotografia, ficamos no banco de trás, filmando o que passa pelo filtro do para-brisa sujo, amando a luz nebulosa. O delírio da terceira gin tônica. As palmeiras, as luzes de madrugada.
8:00. Acordo cedo, quero dar um rolê. Acho uma feira de comidas perto do apartamento. Tem cheiro de algo podre misturado com hortelã. Há montanhas de folhas de hortelã frescas no chão, espalhadas nas mesas, enchendo as cestas. Compro 1 quilo de cerejas, uns pães que parecem feitos de fubá, e um doce que não sei o nome. Tomo um chá em pé, servido por uma moça com sorriso tímido.
13:00. Encontro a Cris por acaso no aeroporto de novo. Nossos voos saíam quase no mesmo horário, o meu para Paris e o dela para Madri. Antes de embarcar, ela toma uma taça de vinho rosé marroquino comigo e fica parada para eu fotografá-la.
Paris. Quinta-feira. 19:25. Aquelas coisas que deixam o mundo todo num high eterno na capital francesa: os tetos de Paris, o piquenique às margens do rio Sena, os escargots com champanhe, o táxi com teto solar num dia de céu azul, o suco de grapefruit no Café de Flore e as promessas de amor em forma de cadeados que enfeitam a Pont de l’Archevêché.
Sexta-Feira. 15:30. Tenho como filosofia que tudo na vida dá pra fazer melhor se for com a desculpa de tirar fotos. Tenho também outra filosofia, de que tudo neste mundo é melhor se for feito de barco. Então surge o ensaio com a Kim, uma modelo inglesa-brasileira que gosto muito, com o barco de madeira veneziana, a garrafa de Chandon, as mexericas minúsculas e o dia ensolarado.
Berlim. Sábado. 8:35. Volto para Berlim, a minha segunda casa. A novidade que me deixa mais feliz nos últimos tempos: meu irmão está morando comigo! Ver ele dormindo no sofá com o Iggy, o cachorro de uma amiga que está viajando de férias, me dá uma empolgação absurda. Minha família está comigo no mundo!
“O que me impressiona é o fato de que em nossa sociedade a arte tenha se tornado algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida. Que a arte seja algo especializado, feita pelos especialistas, que são os artistas. Mas a vida de todos não poderia se tornar uma obra de arte? Por que um abajur ou uma casa pode ser arte, mas a nossa vida não?” Michel Foucault