Como dormir na pandemia?

O neurocientista Sidarta Ribeiro fala sobre o que acontece com o sono e os sonhos em épocas de crise

por Bruna Bittencourt em

Para muita gente, dormir não é fácil. Em épocas consideradas “normais”, 73 milhões de brasileiros sofrem de insônia, segundo a Associação Brasileira do Sono (ABS). Em tempos de preocupação e ansiedade como os que estamos enfrentando por conta da Covid-19, natural que até quem dormia sete horas seguidas se canse na hora de descansar. “As pessoas estão muito estressadas, com muita adrenalina, noradrenalina, muito cortisol no sistema e isso impede o sono”, diz Sidarta Ribeiro, professor titular de neurociências, vice-diretor do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e um dos principais cientistas brasileiros. 

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Para Sidarta, os sonhos estão à flor da pele. “Claramente, a crise emerge nos sonhos, não necessariamente como pesadelos, até porque os sonhos têm como uma das suas funções atenuar conteúdos negativos”, diz. Olhando para o passado, há registros de sonhos premonitórios na Primeira e Segunda Guerra Mundial, em relatos de Jung e seus pacientes, como conta o cientista. 

No ano passado, o professor lançou O Oráculo da Noite —  A história e a ciência do sonho, em que responde por que sonhamos, lembra da importância dos sonhos para as civilizações antigas e para a evolução da humanidade, costurando história, medicina e psicanálise em 500 páginas.

Trip conversou com Sidarta sobre sono e sonhos em época de pandemia, os reflexos atuais do desmonte da ciência e as mudanças comportamentais que o coronavírus vai nos exigir em um futuro próximo. “Agora está tudo em xeque, só temos uma chance que é abraçar a ciência e o amor. Sem eles, a gente tem um futuro muito feio pela frente.”

Trip. Como o sono se comporta em uma situação de crise, com ansiedade e stress? 
Sidarta Ribeiro. Estamos vivendo uma situação contraditória. As pessoas que podem e têm recursos, que são a minoria, têm muito mais tempo para ficar com a família, para ficar em casa, para dormir, até para sonhar. Elas estão com medo de morrer e isso se manifesta nos sonhos. Por outro lado, as pessoas estão muito estressadas, com muita adrenalina, muito cortisol, muita noradrenalina no sistema e isso impede o sono. Acho que é uma crise que coloca em xeque todas as certezas do capitalismo predatório e as pessoas estão naquela situação tão natural e ancestral que é o medo de morrer. Desde que os antibióticos foram descobertos, a classe média e os ricos vivem a ilusão da vida eterna e fazem cirurgia plástica até os 80 anos. E agora está tudo em xeque, só temos uma chance que é abraçar a ciência e o amor. Sem eles, a gente tem um futuro muito feio pela frente.

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Há estudos sobre como o sono e os sonhos das pessoas se comportaram em outras épocas de crise como a Primeira e Segunda Guerra Mundial? Quando o stress aumenta, as pessoas dormem menos. Os predadores dormem melhor que as presas. Na Primeira e Segunda Guerra, as pessoas tiveram sonhos premonitórios e antecipadores que foram notados em clínica. Jung, por exemplo, falou claramente sobre os sonhos que ele ou seus pacientes tiveram, do banho de sangue que viria na Primeira e, depois, na Segunda Guerra. Os sonhos são um oráculo probabilístico, uma tentativa de prever o futuro com base no que já se sabe. Isso é produzido pelo inconsciente, que junta as pontas, e pode vir para o consciente. Aquilo que está se manifestando e ainda não emergiu para a consciência tem a chance de se manifestar nos sonhos —  nas guerras, isso aparece muito claramente. É um momento em que as pessoas sonham muito com o que virá depois e com esperança que as coisas se resolvam, tantos pesadelos, que antecipam as ameaças, quanto sonhos de realização de desejo. 

Sidarta Ribeiro, nas Páginas Negras da Trip, em 2014 - Crédito: Eduardo Maia/Acervo Trip

Imagino que haja agora um pico da venda de medicamentos para dormir. Um pico que precede o desabastecimento de tudo. As cadeias produtivas estão se desmontando, o capitalismo está em choque. O mesmo capitalismo que convenceu que as pessoas precisam dos ricos. Agora a gente vai ver que os ricos precisam dos pobres. O consumo vai parar. O Brasil está fazendo muito pouco neste sentido. É um momento crucial de distribuição de renda. Se não houver isso agora e manutenção do consumo, a economia vai parar. Isso meio que já está acontecendo. Neste mundo globalizado, se a China para de enviar componentes, o Brasil para de montar coisas.

Mais do que nunca é importante lembrarmos dos nossos sonhos? As pessoas que estão conseguindo se manter em harmonia —  não digo em paz —  percebem que os sonhos estão muito mais à flor da pele. Tem pesquisa sobre isso rolando na USP. Aqui no Rio Grande do Norte, a Natália Mota [pesquisadora do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte] está fazendo uma pesquisa on-line sobre os sonhos na pandemia com 50 pessoas. Claramente, a crise emerge nos sonhos, não necessariamente como pesadelos, até porque os sonhos têm como uma das suas funções atenuar conteúdos negativos. Muitas vezes, a gente sonha com a desgraça de um jeito cômico ou mais leve. Por isso, é importante as pessoas se conectarem consigo mesmas. Porque senão elas vão fazer disso um ciclo vicioso: dormem mal, sonham mal, se estressam mais, reagem pior ao que vem no dia seguinte. Aí, dormem pior ainda e vão começar a se desesperar. Não vamos ficar em confinamento por poucas semanas. Esses momentos-limite, que nos colocam entre a vida e a morte, são existencialmente muito profundos. Quem conseguir se conectar com o eu superior e sair do pânico, vai crescer em termos de autoconhecimento.

Como lidar com a ansiedade? Cuidando dos outros, amando, fazendo serviços domésticos. Para quem não lava um banheiro há muito tempo, é hora de lavar; para quem não lava louça nunca, é hora de lavar. Isso diminui a ansiedade porque a gente cuida do presente. Vivemos em um mundo do futuro, esperando o que vai vir, querendo mais. E esse mundo está em xeque. Qual o futuro que a gente tem? Não está claro.

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Quais dicas você daria para a gente conseguir dormir bem à noite neste momento de crise? É preciso fazer uma higienização das notícias que escutamos, selecionar as fontes de informação. É o momento de a gente cultivar internamente a harmonia, a beleza, o amor. Tem muita música boa, muito filme bom, muito livro bom. Vamos a eles. Segundo lugar: temos que cuidar do tripé sono de boa qualidade, alimentação de boa qualidade, exercício físico, que não pode ser extenuante, isso aumenta o risco da infecção, deve ser moderado, mas diário, porque isso tem muito a ver com a manutenção de um equilíbrio hormonal. Outra coisa é passar a olhar mais para os outros. É muito terapêutico cuidar deles. Quando a gente começa a olhar demais para o próprio umbigo, não no sentido da introspecção que é positiva, mas no do medo de morrer, a gente entra em pânico e isso não vai ajudar ninguém.

Crédito: Elisa Elsie/Divulgação

Como cientista, como vem observando a pandemia? Um desastre, um completo desastre. A Europa reagiu mal, está pagando um preço altíssimo, fazendo um suicídio econômico, porque deixaram [o vírus] se espalhar, não testaram as pessoas direito. O lockdown é necessário, mas quando é tarde demais, é tarde demais. E o Brasil nem se fala. É preciso responsabilizar o que este governo está fazendo, o Bolsonaro vai matar muita gente. É muito triste ver que as pessoas preferem o pensamento mágico à ciência. Houve um desinvestimento em saúde e ciência no Brasil muito forte desde o impeachment da Dilma. Mesmo antes havia problemas, porque havia um correlação de forças muito complicadas. Mas, depois, no governo Temer, foi uma desgraça e, no governo Bolsonaro, nem se fala, ele quer destruir tudo. E é muito feio ver que muitas das instituições que têm isenção fiscal, que tem todo o tipo de benefício para funcionar, que são as religiosas, estão levando o rebanho para o suicídio.

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Você faria um prognóstico no campo da ciência, pós-pandemia? Hoje, a máquina da ciência está voltada para se resolver isso. Supercomputadores fazendo análises, simulando moléculas para tentar achar remédios. E a gente está avançando nisso. Por outro lado, a Sars, que é o antecedente direto da Covid-19, tem 20 anos e não temos uma vacina até hoje para isso, que poderia estar nos salvando agora, em parte porque não houve interesse econômico porque a saúde virou negócio. Porque a gente não tem a saúde, tem uma máquina de fazer dinheiro. O problema é que já temos a pandemia. Ela se prolifera mais no inverno e, se vivemos em um mundo globalizado, precisamos resolver [esta questão] no mundo inteiro, sempre haverá um hemisfério no inverno. Se nós seremos um mundo globalizado, a única forma de resolver isso é fazendo isso no mundo inteiro. É uma situação muito grave, as pessoas querem voltar para a vida que tinham. Nós não vamos voltar para a vida que tínhamos. A Covid-19 é uma oportunidade para mudarmos. A Trip está há mais de 20 anos falando disso, faz parte de um movimento por uma mudança comportamental. A gente não pode mais viajar tanto de avião, consumir tanto, invadir os ambientes naturais, não pode ter pobre sem água. Os ricos vão começar a entender que os pobres não terem água mata rico também. Na hora que os ricos quiserem dar entrada na UTI e não tiver leito para eles vão pirar porque acham que dinheiro compra tudo. É uma mudança global, não acho que vá passar rápido. Pode acontecer um milagre e os supercomputadores do MIT ou cientistas muito sagazes descobrirem algo milagroso? É meio improvável nesta altura do campeonato. Foram anos e anos de desmonte científico, no mundo todo, não só no Brasil. O Trump atacou muito a ciência, só não atacou mais porque o congresso americano não deixou. É muito triste e as pessoas que acham que a fé vai salvar serão as primeiras a morrer. 

  

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