Sonhos e Delírios
Utopia, de Thomas More, deixou sua marca em muitos pensadores que defenderam sociedades igualitárias. No século 19 – mas também influenciou um monte de malucos
A utopia é importante? Devemos buscá-la, lutar por ela, mesmo sabendo que muito provavelmente não a alcançaremos? Sim, é a resposta de quase todo mundo. Mas de onde vem essa ideia? Vem, em boa parte, do livro Utopia, que o inglês Thomas More (1478-1535) publicou há 500 anos. Consta que foi inspirado pela leitura de relatos de viajantes europeus às Américas, especialmente o que contava a visita de Américo Vespúcio à região de Cabo Frio, no atual litoral carioca, que More elaborou a descrição de um país inexistente (de “u-tópico”, ou “não lugar” em grego). A Utopia de More seria um reino localizado numa ilha em algum ponto do Novo Mundo.
Mas o que realmente inspirou muita gente, por séculos, em Utopia, foi o fato de More escrever que lá todos viviam em harmonia, eram felizes e que, principalmente, não existia propriedade privada. Tudo era compartilhado, cada um usando apenas o que precisava. O problema é que, encantos à parte, Utopia é obra de um autor do século 16: o governo era monárquico (embora “esclarecido”), o sexo antes do casamento e o adultério eram crimes graves, as viagens de uma cidade a outra só eram permitidas com a posse de um passaporte e, pior, havia escravos, obtidos entre prisioneiros de guerra ou criminosos condenados (incluindo os adúlteros).
Se Utopia deixou sua marca em pensadores que defenderam sociedades igualitárias e democráticas, como muitos anarquistas e socialistas do século 19, ela também influenciou malucos. Os primeiros foram os anabatistas de Münster, que em 1534 instauraram naquela cidade alemã um governo fanático, matando um monte de “infiéis”. E o século 20 veria novos e terríveis ecos de Utopia, como o comunismo soviético, que, principalmente sob Stalin, usou a ideia de igualdade para justificar seu regime de terror.
A influência do livro em si, porém, ficou no passado. A palavra utopia se descolou da origem, e o discurso dominante hoje repete sem parar que as utopias são importantes e que devemos cultivá-las. E sabem por que essa conversa cola? Porque, sendo utopia, ou seja, algo que é irrealizável, cada um pode ter a sua e ninguém vai brigar pelas diferenças.
DE HITLER A JIM JONES
Eu não gosto de utopias. Acredito que é melhor olhar de frente para o mundo em que vivemos, com os seus defeitos, seus desafios e suas qualidades (sim, elas existem); que é melhor buscar o que pode ser melhorado, concretamente e democraticamente. A utopia é, por definição, individual e irrealizável. E quando um maluco qualquer decide que é possível tornar concreta a utopia dele, e por um acaso do destino assume o poder, o estrago pode ser gigantesco. Tanto num plano mais restrito (me vem à mente aquela comunidade mística liderada por Jim Jones, que cometeu suicídio coletivo na Guiana, na década de 1970) quanto num mais abrangente (uma imagem perfeita são as fotos de Hitler, ao lado de seu arquiteto Albert Speer, examinando as maquetes de Welthauptstadt Germania, a utópica futura capital do mundo).
Utopia, enfim, virou sinônimo de sonho. Não são a mesma coisa: sonho é desejo, é devaneio, podendo até mesmo virar projeto pessoal. Já utopia é delírio político, e a transformação do delírio de uma pessoa em projeto coletivo costuma resultar em grandes pesadelos. Se quiser criar um mundo ideal segundo os seus critérios pessoais, faça como Thomas More e escreva um livro ou jogue SimCity. Você vai se divertir construindo seu lugar perfeito, e ninguém terá que pagar por isso.