Cigarro, herança maldita
Se os índios foram mortos à vista, para os ocidentais deixaram a morte a prazo: o tabaco
Se os índios foram mortos à vista, eles deixaram para os ocidentais a morte a prazo: o tabaco, que dizimou gerações e gerações com doenças como câncer no pulmão, enfisema e insuficiência cardíaca
O frei Bartolomé de Las Casas, nascido em Sevilha em 1474, foi o grande cronista do genocídio perpetrado pelos europeus na América, ao mesmo tempo que o maior defensor, ainda que sem muito sucesso, que os indígenas tiveram diante dos espanhóis. Pouco antes de morrer, indignado com todas as crueldades que presenciou, redigiu seu testamento, praticamente uma maldição: “Creio que por causa dessas obras ímpias, criminosas e ignominiosas, perpetradas de modo tão injusto, tirânico e bárbaro, Deus derramará sobre a Espanha sua fúria e sua ira...”.
Os índios, por sua vez, ainda que derrotados, deixariam uma herança sinistra para os europeus, com influência radical nas futuras gerações do Ocidente: o tabaco, muito difundido nas Américas mas desconhecido, então, em outros continentes. Sobre isso, Las Casas também escreveu um texto pioneiro, muitos anos antes daquele testamento: “[Os índios] Tendo acendido uma ponta, pela outra sugam, absorvem, e ingerem aquela fumaça junto com a respiração, com o que eles ficam entorpecidos e praticamente bêbados, e dizem não sentir cansaço, e a isso eles chamam de tabaco. Eu conheci espanhóis nesta Ilha de Hispaniola (Haiti) que estavam acostumados a tomar aquilo e, quando repreendidos, sob o argumento de que aquilo era um vício, respondiam que não conseguiam parar de usar. Eu não sei que conforto ou benefício eles encontraram naquilo”.
Baforadas e Inquisição
Como nem todo mundo tinha a natural tolerância de frei Bartolomé, os anos iniciais do tabagismo entre os europeus não foram fáceis para a primeira turma de viciados. O fumante Rodrigo de Jerez, por exemplo, um dos membros da tripulação de Colombo, acabou preso e torturado pela Inquisição, pois “somente o diabo poderia dar a um homem o poder de soltar fumaça pela boca”.
Por um lado, parece ter sido realmente cumprida a maldição do frade: se os índios foram mortos à vista, eles deixaram para os espanhóis (e ocidentais em geral) a morte a prazo, com gerações e gerações de doentes de câncer no pulmão, enfisema, insuficiência cardíaca etc. Mas, por outro lado, parece que, na era da democracia digital (em que os representantes eleitos tudo veem e quase tudo podem), estamos de volta, em alguns aspectos, ao autoritarismo e à intolerância de 500 anos atrás. Se antes era a sagrada Inquisição, ancorada em Deus, agora é o Estado que tudo regulamenta, vigia e pune, ancorado no saber médico/científico. Um e outro consideram que somente o diabo poderia levar você a soltar fumaça pela boca. E a tomar uma cerveja gelada e dirigir. E a acender... enfim, essa é a ideia.
Ora, a questão das drogas (tabaco incluído) deveria ser, antes de mais nada, a questão dos direitos civis. De se decidir quem, e por que, tem o direito de lhe dizer o que você pode ou não fazer. Não adianta falar que a liberdade de um termina onde começa a do outro e que, enfim, se eu fumar no bar eu compartilho o mal com o vizinho de mesa.
Porque o que acontece é que o discurso autoritário sempre alega o bem comum. No caso do cigarro, eu, que aliás não fumo, não vou chegar ao ponto de dizer que o vale-tudo é bacana e que é gostoso tomar uma baforada na cara. O ponto não é defender cigarro. O ponto é que acredito que se poderia ampliar o debate, com a busca por soluções que conciliassem os interesses conflitantes. O ponto é que, valha-me frei Bartolomé, às vezes parece que a Inquisição voltou.
*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br