Chico César: cultura, poesia e política
Chico César dedicou os últimos seis anos ao cargo de Secretário de Cultura da Paraíba e usou a experiência para compor novas músicas, que fazem parte do disco de inéditas Estado de poesia. Leia conversa com o cantor
Depois de seis anos atuando na Secretaria de Cultura de Paraíba, Chico César se afastou da música. O compositor e cantor, renomado e conhecido pelo eterno hit Mama África, chegou a se sentir longe de conseguir escrever letras como as já conhecidas em sua voz e na de outros artistas, como Daniela Mercury.
Sempre ligado à política, descobriu na experiência do cargo um novo jeito de observar o mundo. Lembrou da força da militância durante sua juventude e reafirmou para si mesmo que a poesia é sua maior luta. Nos últimos três anos, começou a escrever para um novo disco, que nasceu naturalmente: Estado de poesia.
O disco de inéditas marca uma fase em que Chico se sente mais enriquecido pelas experiências vividas por sua volta à Paraíba, onde nasceu. O primeiro single, Da taça, já está disponível para ouvir on-line e todo o trabalho tem parceria com o projeto Natura Musical e será lançado dia 23 de junho nas plataformas digitais pelo Laboratório Fantasma, selo de Emicita e seu irmão Fióti.
Conversamos com ele sobre o que inspirou suas composições inéditas, militância política e os conflitos de viver em uma das maiores cidades do país, São Paulo.
Como esse novo disco nasceu? Nos primeiros seis meses que eu estava trabalhando na Paraíba, abria o violão, morando numa casa perto da praia e de uma vila de pescadores em João Pessoa, e nada me ocorria. Não vinha nenhuma inspiração, nada que eu realmente gostasse. Confesso que me deu até um certo desespero, "será que sou um ex-compositor?". Mas depois desses seis primeiros meses as coisas foram se acalmando e comecei a entender melhor a questão de ser gestor público. A inspiração foi voltando e compus muitas canções. Inspirado, inclusive, em conversas que eu tive com a Maria Bethânia, que me ligou para que eu fizesse algumas músicas para o seu disco mais recente. As motivações dela tinham a ver com o universo que eu também estava mergulhando, o de falar de um povo do interior do Brasil. Não sobre a perspectiva antropológica, mas a do amor.
São canções que você compôs durante esse tempo? Sim. Acho que a primeira metade do tempo que fiquei por lá foi para me adaptar. Foi muito bom voltar ao meu estado, visitar cidades que não conhecia, reconhecer coisas que eu gostava muito e que sinto que precisam mudar.
Como o quê? Acho que essa coisa do patriarcado, dos latifundiários, do machismo. Esse modelo ainda é muito opressivo; o homem branco sempre está no comando.
Você sente que isso é mais forte no norte e no nordeste do País? Lá, eu acho que esse comportamento acontece de uma forma diferente de São Paulo. Não que aqui não exista. O País foi feito dessa forma, por capitanias hereditárias onde todos eram homens e brancos. As mulheres, brancas ou negras e os homens negros vão ser julgados sob esse ponto de vista. Até hoje é assim. Apesar de todos os avanços que temos, essa opressão é muito grande, então o afeto e a poesia são instrumentos de mudança.
E como foi essa experiência da música para a política? Foi a primeira vez que exerci um cargo político. Na minha adolescência fui do movimento estudantil e cheguei a fazer greve de fome. Eu tinha uma militância social e cultural, todo sábado recitava poesia na rua em um movimento de João Pessoa, o Fala Bairros, que fizemos nos anos 80. Quando o prefeito me chamou para exercer o cargo, me questionei o por que daquilo. Então, lembrei que ele é da minha geração e participou do movimento de sindicatos e cultura dos bairros e percebi que ele queria um pouco dessa experiência que tivemos anos atrás colocado em prática no governo.
"Há uma falta de amadurecimento quando você tem homossexuais defendendo as causas de Bolsonaro e mulheres votando no cara que explicitamente bate em mulher"
Você acha que as pessoas precisam se voltar mais para essa militância e conscientização política e cultural? Não sei se estou falando de uma minoria, mas vejo os jovens bastante interessados em política. Seja nos movimentos do Samba da Vela em São Paulo, do Sarau do Binho, da Cooperifa, os jovens que fazem a cena hip hop do Brasil inteiro ou naqueles que estão por trás do movimento pró impeachment da presidenta da República e pedindo a volta da ditadura militar. A gente pode concordar ou não com eles, mas o fato é que os jovens têm construindo seus próprios canais de expressão, principalmente os da periferia.
Nessa questão do impeachment, você acha que estão nas ruas por uma consciência, de fato, ou por que há uma instatisfação geral que as pessoas não sabem muito bem de onde vem ou pra onde vai? Eles têm consciência de classe. Eles são brancos, de uma classe média que até pouco ia pra universidade e não tinha colegas pretos. Eles pegavam avião sem pobre pedindo ajuda para abotoar o cinto. É a consciência de uma classe que reinvidica de volta alguns privilégios exclusivos. Há uma falta de amadurecimento quando você tem homossexuais defendendo as causas de Bolsonaro. Quando você tem negros se juntando a esses jovens brancos que são racistas. Quando você tem mulheres que votam no cara que explicitamente bate em mulher. Os que comandam esses movimentos têm consciência, muitos do que vão na onda é que não têm. Eu, pessoalmente, desde jovem, estou do lado do pessoal da Cooperifa, dos estudantes que fazem greve para que não aumentem o valor da comida, do ônibus. É um problema quando você confunde o cidadão com o consumidor. Cria-se uma confusão porque, na verdade, nós todos podemos viver com menos, pobres e da classe média ou ricos e muito ricos.
Existe uma pressão do capitalismo. Sim. Acho que falta uma educação que nos dê um olhar mais cuidadoso com o consumo. Eu posso ter um carro novo, mas eu não preciso. Eu posso ir de bicicleta para o trabalho, eu posso ir a pé. Se a gente não adotar em todos os segmentos sociais uma política de educação que leva as pessoas a refletirem sobre hábitos de consumo, não vamos conseguir avançar muito. Se todos quiséssemos menos, inclusive os ricos, haveria muito menos conflitos. A gente precisa abrir mão dessa coisa de possuir algo só pra si e cooperativar o uso, sem competir. Todos devem ter direito ao transporte, à moradia, ao cinema, à cidade. Eu ter voltado pro meu estado e ter concebido essas canções lá me fez ter reflexões sobre isso: quem ocupa a cidade, quem tem o direito e como o faz? Essa é a grande questão.
Você está em São Paulo agora? Voltei pra São Paulo. Morei 25 anos aqui, fiquei os seis anos anteriores lá na Paraíba e agora estou de volta. Metade da minha vida é aqui, exatamente. Estou com 51 anos.
"É de bom senso pensar na cidade como uma metáfora da vida. A cidade é para todos, a vida é para todos."
E você acha que em São Paulo essas coisas estão mais gritantes? A disputa pelo espaço urbano por quem manda na cidade é maior. Essas questões de gentrificação, de filtrar quem frequenta determinado espaço na cidade, por exemplo, são questões que aparecem todos os dias. É quando a gente escuta que os mendigos não podem mais ficar embaixo da ponte e que os pobres não podem mais morar no centro. Onde eles vão morar? Se o cara precisa trabalhar no centro, ele precisa ter direito ao transporte. É de bom senso pensar na cidade como uma metáfora da vida. A cidade é para todos, a vida é para todos.
Então você é a favor do passe livre, por exemplo. Eu não sei se isso é possível, mas sou a favor de que todo mundo tenha direito de circular livremente no espaço urbano. Eu gostaria de ir com a minha bicicleta para todo o lugar sem ter medo de nada, mas eu ainda não consigo.
Por quê? Não existem ciclovias o suficiente e não há educação o suficiente dos motoristas, que muitas vezes enxergam o cara da bicicleta como vagabundo. Mas acontece que esse vagabundo está indo trabalhar, como eles, e está poluindo menos, dando uma contribuição para o trânsito e para a cidade. A gente criou armaduras, o carro é uma espécie de condomínio fechado onde você não precisa ter contato com o outro. Sinto que nós precisamos de mais poesia no cotidiano. Esses processos todos são uma negação da convivência, e nada nos ensina mais do que a convivência. É bonito quando você vê esses movimentos como o Ocupe Estelita em Recife, o Parque Augusta em São Paulo, a Cidade Baixa na Bahia…
O nome do seu novo disco, Estado de poesia, brinca com o sentido de estado de espírito e estado como sociedade? Sim, porque ele tem a ver com a volta ao meu estado de origem, Paraíba, e com um estado de espírito que me ajudou a compreender o mundo a partir de lá. Voltei com outros olhos e percebi que o lugar tinha mudado muito. Lá é onde eu me apaixono pela vida e onde eu fico curioso por algo que faz parte de mim.
E você pretende se envolver em outros projetos políticos ou a sua militância vai continuar sendo a sua música? Nunca deve-se dizer que dessa água não beberei, mas eu espero que a minha poesia e a minha música sejam o suficiente. Obviamente que é importante quando você é chamado pra uma responsabilidade e vê que pode dar a sua contribuição. Foi o que aconteceu lá. Não é por vaidade, mas por saber que você, de certa forma, pode fazer a diferença nesse trabalho por algum tempo. Mas se você não percebe que esse tempo se esgotou, você começa a ficar igual aos outros políticos. O fato de ter a vivência de artista e colocar isso dentro daquela máquina de gestão é o que altera todo o mecanismo.
"Quando eu apareci no mundo da música com a Mama África, muitos garotos cantavam essa música para a mãe deles. Achavam que a Mama África não era qualquer mãe, era a deles"
Esse disco você gestou na Paraíba e foi gravado em São Paulo? A pré-produção foi toda na Paraíba, viemos sabendo exatamente todos os arranjos. Mas lá não tínhamos um estúdio onde pudéssemos gravar como nos anos 70, todo mundo tocando ao mesmo tempo. Gravamos no Alambari. Então várias vozes que estão no disco são as que foram cantadas junto com a banda. Não tem muitos retoques, queremos manter o espírito original. Não sei se fica mais verdadeiro, mas me parece mais fresco dessa forma. Com menos aditivos, menos transgênicos [risos]. A gente precisava resgatar essa alegria de tocar junto.
E a escolha do lançamento nas plafatormas digitais, você acha que é preciso estar na internet para ser ouvido e visto? Muitos de nós passamos boa parte do nosso dia conectados na internet. O mundo da música foi fortemente impactado pelas plataformas digitais e as gravadoras demoraram muito a entender o que era isso. A princípio elas notaram que estava surgindo um inimigo, mas pensaram que era pequeno, quando na verdade era uma coisa muito grande. Acho que isso foi bom. Muita gente que não conseguiria gravar suas músicas e torná-las conhecidas, conseguiu fazer com que seu som chegasse às casas de pessoas que também queriam ouvir coisas novas. Não precisa-se mais que tudo venha pela gravadora ou pelo rádio. Essa possibilidade de escolha é fantástica! Pulverizou e democratizou o que era um negócio especialmente lucrativo.
Como o Emicida e o Fióti fizeram com o Lab Fantasma. Exatamente. Hoje seria fácil pensar que uma gravadora contrataria o Emicida, mas há quatro anos não. Se pensarmos no Criolo, por exemplo, ele passou muitos anos querendo lançar um disco sem conseguir. Ele existia e as gravadoras existiam, o que não havia era interesse das gravadoras na importância do trabalho dele.
Você é a favor da distribuição gratuita das músicas? Eu acho que é bom se isso é uma decisão do criador da obra. Quando você oferece a música na internet, se a pessoa realmente gosta, ela vai aos seus shows e provavelmente ela vai comprar o disco físico também. Não é porque você distribui de graça que não há um retorno financeiro.
Sobre essa parceria com o Fióti e o Emicida, eles são de uma outra geração e que agora você encontra nesse trabalho. Como é isso? É muito bom. Eu sinto que eles têm um respeito muito forte pelo meu trabalho, não tinha essa dimensão. Isso reafirma a aproximação que a minha música tem e sempre teve com a periferia. É daí que eu venho também. Quando eu apareci no mundo da música com a Mama África, muitos garotos cantavam essa música para a mãe deles. Achavam que a Mama África não era qualquer mãe, era a deles, já que geralmente os pais estavam presos, mortos ou deixavam a família. Quanto ao Emicida, eu sei que a nossa música é diferente, mas elas se encontram em algum momento. Primeiro pela palavra, que é muito importante para ele e pra mim, depois por uma ligação ética pela vida, que é onde eu acho que as coisas ficam muito próximas. Provavelmente essa identificação vai virar música.