Cartas para o futuro
Leitores escrevem textos para si mesmos ou outras pessoas para serem lidos em 2020
Recebemos mais de 100 cartas.
Aqui você pode ler, além das que foram publicadas na Revista, as selecionadas exclusivamente para o site:
- Uma maçã do amor para 2020 - por Flávia Cintra
- De Lu 2010 para Lu 2020: Responda-me ou me devoro - por Luciana da Silva
- Vida em tecnicolor? - por Paula Gomes
- Epitáfio: uma caixinha de surpresas - por Ana Carolina Goes Machado
- Sobre amor, incertezas e batatas - por Chloé Pinheiro
- Sobre formigas e cigarras - por Ana Luiza Hemeritas Pandolfi
- 32 vai ser o novo 22 - por Alice Mascena Barbosa
- Para o editor - por Matheus Joffre
- Para você, personagem - por Tatiana Pereira
- RT, DM, Vc, PQP - por Melissa Pio
- Para meu filho - por Ilana Reznik
- Aos 56 - por Paulo Babboni
- Uma carta miguxês - por Tiago Sousa
- Sorvete - por Gisela Blanco
- Esquecer uma pessoa com delete? - por Mari Avilla
Uma maçã do amor para 2020 - por Flávia Cintra
Assim como as outras mães paulistanas, eu passei este inverno seco de 2010 lembrando meus filhos de beberem água toda hora e aplicando soro fisiológico em seus narizinhos. Com o umidificador2 ligado na sala, agora assistimos o DVD3 da Branca de Neve enquanto eu penso no futuro.
“Faça um desejo e morda a maçã!” - diz a rainha má.
Com 3 anos de idade, a situação mais injusta que meus filhos já viram foi Branca de Neve mordendo a maçã envenenada. Não conhecem o preconceito e a dor que ele causa. Me angustia pensar que seja inevitável eles provarem desse veneno. Nós merecemos um mundo mais justo.
Hoje, eu mordo esta maçã desejando que em 2020 seja comum uma cadeirante ter filhos, trabalhar em qualquer função ou fazer compras no supermercado.
* Flávia Cintra tem 37 anos, é jornalista, cadeirante e mãe de gêmeos
De Lu 2010 para Lu 2020: Responda-me ou me devoro - por Luciana da Silva
Não falo 03 idiomas, nunca morei no exterior. Estudei muito para ganhar pouco e pouco para ganhar muito. Quero um trabalho bacana, como fazer?
Aos 32, ainda não tenho um companheiro, mas preciso ser “bem-resolvida” e cool. Ou seja, fingir que não estou nem aí se ele não liga depois da terceira noite romântica e não considerar falta de gentileza se ele – ganhando dez vezes mais – nunca se propõe a pagar a conta sozinho. Como ser cool?
Tudo avança rapidamente, mas a era do "tem que" parece estar longe do fim. A gente "tem que": ser independente financeiramente, liberada sexualmente, correta ecologicamente e engajada politicamente. Vestir-se estilosamente, beber moderadamente, malhar diariamente e comprar compulsivamente. Tem que ser espiritualizada ( bacana!), mas religiosa nem pensar (careta); tem que ser sensual (chique), mas cuidado para não descambar para o sexy (vulgar). Como lidar?! Se, aos 42, você não achou ainda as respostas, te mato!
Vida em tecnicolor? - por Paula Gomes
Ninguém escreve mais cartas hoje, só mensagens instantâneas. Mas como eu só quero que você leia isso daqui uns 10 anos, estou escrevendo uma. Depois de tomar algumas taças de vinho e enquanto você dorme, sonhando em tecnicolor. Porque você é criança e pinta o mundo com cores saturadas. Mas, depois que cresce, tudo vai se desbotando, revelando os tons de cinza por baixo.
Daí o mundo fica com cara de filme antigo. E é sempre o mesmo filme, não importa a data. Só o que muda é aquilo que não é importante. Pois, por mais que tudo esteja sempre girando, nós somos sempre os mesmos: nascemos, temos filhos e morremos para outros iguais nascerem. Mas passamos nossas vidas inteiras achando que não pertencemos a esse esquema.
Tentamos entender a nós mesmos e aos outros, mas a torre de babel desmorona todas as vezes. Somos pessoas com tudo que isso dá o direito. Mas mesmo assim, sempre que alguém te sorrir na rua você vai acreditar num futuro melhor, mesmo que ele seja rigorosamente igual ao que era dez anos atrás.
Epitáfio: uma caixinha de surpresas - por Ana Carolina Goes Machado
Pegue tudo que você quer esquecer e ponha dentro de uma caixa, feche-a e enterre-a, como se ela fosse um caixão. Só não se culpe pelo assassinato: foi em legítima defesa. Depois, esqueça a caixa e onde ela está.
Após deixar as coisas ruins no passado, viva o presente sem pensar no futuro. E, quando menos esperar, o que você chama de presente será passado e o que chama de futuro será presente. Nesse dia, você cairá na tentação e olhará para trás, lembrando que um dia cometeu um crime. Exume o corpo da vítima e terá uma grande surpresa! Tudo aquilo que um dia você quis esquecer terá se transformado em algo que você não se importa mais em lembrar e que pode até te fazer rir.
Junto com a caixa estará também esta carta. Só não se acanhe! Se necessário, repita todo este processo novamente, até o dia em que você estiver dentro da caixa e o ciclo do tempo estiver terminado pra você.
Sobre amor, incertezas e batatas - por Chloé Pinheiro
Por mais que o homem já tenha inventado descascadores de batatas, ainda assim é bem chato descascar esse tubérculo. Do meu lado está você, destrinchando um frango.Um gole de cerveja entre uma facada e outra, o tempo de espera até o fogão fazer a parte dele. E o nosso almoço está na mesa. Depois de uma quantidade de comida que nunca seria adequada pra um almoço chique, o colchão de casal jogado no chão da sala parece mais com uma espreguiçadeira de hotel de luxo. Você consegue ver que a nossa TV ainda era meio velha? Nem canais pagos tínhamos!
Há dez anos era assim que nós vivíamos. Meio que imunes a um monte de convenções, rituais e protocolos. E agora, me conta como é? Ainda cozinhamos juntos ou você senta pra ver TV? Temos filhos? Eles têm seus olhos azuis meio verdes? Será que eles têm a sua mordida cruzada ou meus graus de miopia? Ou será que só você teve filhos e eu virei uma solteirona workaholic?
Não sei se em 2020 ainda existe romance, mas tente resgatar as lembranças dessa tarde. Da felicidade que hoje temos de sobra. Da sua mão ainda cheirando a cebola. E, se estivermos atravessando momentos difíceis... lembre-se que, pelo menos por 48 horas, tudo foi ridiculamente fácil.
Sobre formigas e cigarras - por Ana Luiza Hemeritas Pandolfi
Filho (a):
Estou te escrevendo essa carta, primeiramente, porque tenho medo de que meu recado seja confundido com um spam, se mandar um e-mail. Além disso, quero abrir seus olhos para o futuro que te espera, se é que máquinas já não façam o papel de mãe. Se assim for, despreze este papel.
Bom, vivemos em uma época em que as pessoas são deglutidas pelo trabalho, assim como as formigas de La Fontaine. Aumentam-se os casos de transtornos psicológicos, causados por mentes e corpos cansados. Deve-se trabalhar muito, sem descanso e, de preferência, em algo que não esteja ligado à arte. Porque, se não for assim, não se é digno de valor. A cigarra não tem chance de sobreviver na nossa sociedade, porque ela quer viver de cantar. A não ser que ela tenha muita sorte ou use calças coloridas e cabelos propositalmente casuais.
Enfrente os costumes. Faça o que quiser do seu futuro. Não se vive para sempre.
Um beijo de dez anos antes, Mamãe.
PS: Se não souber quem é Fontaine, dê um Google.
32 vai ser o novo 22 - por Alice Mascena Barbosa
Caríssima,
Se você (eu) estiver lendo essa carta escrita há 10 anos e ainda morar na casa da sua mãe, pare agora. Dobre a carta, guarde na bolsa (mas termine de ler depois, por favor!), organize suas finanças e encontre um apê.
É sério. Se esse não é o caso, ufa. Mas, pra ser sincera, caso você (eu) não lembre, a sua (minha) maior expectativa em relação ao que seria da vida em dez anos era relacionada ao que viramos profissionalmente.
Tudo bem, uma graduação em comunicação tem seu valor, mas, como logo percebemos, não há nada mais vago do que “comunicação”. Sem querer fazer pressão, mas se estivermos mudando o mundo com essa tal profissão, melhor ainda.
Last but not least, relacionamentos. Hum... O que dizer a respeito disso? Se já tivermos escolhido um parceiro de vida, OK. Se não, OK também; se hoje em dia as pessoas casam cada vez mais tarde, imagino que em 2020 os 32 anos serão o novo 22.
Para o editor - por Matheus Joffre
Caro editor,
Sei que nos dias de hoje não há mais espaço e, sobretudo, tempo para reflexões sobre a nossa profissão por conta da atribulada vida contemporânea. As informações se desdobram e se propagam interruptamente, sem sequer nos dar a oportunidade de digeri-las. Ao longo dos anos aprendemos que a eficiência é a alma de qualquer negócio e somos condicionados a deixar a coisa fluir no automático.
A par de tudo isso é que venho lhe pedir para que se lembre do protótipo à foca que pisou pela primeira vez nessa redação há dez anos. Com o jeans surrado e currículo nas mãos, entrou perto do fim do expediente de uma sexta-feira com a cara de pau de um recém-formado e cheio de ideias na cabeça. Em cinco minutos de conversa, entre dúvidas e incertezas, havia jogado sua semente. Poucos dias depois, o telefone tocaria anunciando seu primeiro freela e dali seria apenas questão de tempo vir a fazer parte da equipe.
Espero que ao recordar o episódio você consiga resgatar o espírito daquele menino que queria experimentar, inventar, inovar. E mais do que isso, que sempre mantenha aberta as portas desta redação para pessoas com ideias novas na cabeça.
Cordialmente,
Protótipo à Foca
revistas.pucsp.br/pontoevirgula
Para você, personagem - por Tatiana Pereira
Inspiração: a carta é para o personagem principal do livro que comecei a escrever em agosto de 2002 e que por motivos ainda desconhecidos, engavetei e continua “obra inacabada”.
Há algum tempo começamos nossos primeiros capítulos. Para ser mais exata, em algum agosto de 2002. Eu, quase dona de você. Te fazendo, nos meus moldes, alguém cheio de defeitos perdoáveis. Gostei de você. Na verdade ainda gosto, mas não consigo entender o que você quer de mim. Não era para eu ser a sua dona?! Então sou eu que tenho de querer, de dar a forma, de ditar o ritmo das coisas. E eu não sei quando é que permiti que você tivesse a chance de falar o que queria, de ter direito a silêncios, de me colocar em dúvidas sobre a estória que eu queria contar.
Daí passei a ouvir outras músicas, a frequentar outros lugares, a me permitir outras aventuras literárias. E confesso, sem arrependimentos [mas com certa timidez], que me apaixonei por outros capítulos que não cabiam você. Contei estórias de amor mais maduras e estive com outros personagens que me deixavam mais à vontade. E talvez daí vem a minha timidez: eu achei que você era o único sujeito de orações subordinadas que me deixaria à vontade.
Confessaria outras indelicadezas, mas sei que é bem provável que você pense que não te fiz obra prima por incompetência minha, e quase me arrependo por escrever uma carta, quando te prometi, anos atrás, um começo, um meio e um fim. Saiba: essa não é uma carta de desculpas, embora pareça. Essa é uma carta de acusação. Te acuso [violando a gramática] por querer saber de mim aquilo que eu pensei para você. Te acuso por invadir os meus planos de felicidade para você. Te acuso por querer aquilo que não é teu de fato. Te acuso por fazer de você obra inacabada.
P.S.: Quero voltar daqui dez anos e te ver completo, então, por favor, me deixe terminar a sua estória.
RT, DM, VC, PQP - por Melissa Pio
De onde será que você está lendo isso? Da 10º geração do iPad ou de um smartphone que ficou tão esperto que atende os comandos do seu pensamento? Ainda existe TRIP em papel? Calma, não estou aqui para fazer perguntas. Estou aqui para te lembrar como são (eram?) as coisas hoje.
As coisas são tão rápidas que vivemos através de siglas. RT, DM, SMS, MSN, VC, FB, PQP! Temos celulares com complexo de computador e computador com complexo de gente. E muita gente complexada. Porque a medida que tentamos humanizar as máquinas estamos também artificializando as pessoas. É tanto botox, plástica e silicone que eu me pergunto se você aí, daqui 10 anos, ainda lembra o que é apertar uma bunda de verdade. Aliás, nem com silicone deixamos de ser bunda moles, já que achamos que só dar RT em uma causa qualquer, de fato, muda alguma coisa no mundo. Por falar nisso, espera, para, estou em crise. Este texto tem mais de 140 caracteres e não sei bem como lidar com isso.
garotasdepropaganda.wordpress.com
Para meu filho - por Ilana Reznik
Bom dia, filho. Digo bom dia porque escrevi uma carta tão ensolarada pra você que eu espero que você leia de manhã, com as janelas bem abertas. Daqui a dez anos eu já vou ser sua mãe, mas hoje eu ainda sou outra coisa que você não vai poder conhecer. Normal. Nem todas as coisas nos esperam para acontecer. É por isso que eu estou escrevendo, porque eu quero muito que você saiba o cheiro que o meu cabelo tem agora aos vinte e poucos anos. E que hoje ele está comprido, mas já foi curto também.
Eu quero que você saiba que eu não perco uma oportunidade de dançar, mesmo que eu esteja no metrô, mesmo que não tenha música. Eu sou assim, filho. E fico feliz quando como atum na hora do almoço. Atum é um peixinho que eu vou te mostrar um dia. Eu sou uma menina que perde todos os papéis e chaves de casa, mas não fica com medo, eu juro que vou saber cuidar bem de você. Quero que você saiba que eu pinto as unhas de amarelo e acredito tanto no amor incondicional, que abro cada vez mais os braços, para que ele ganhe o mundo.
Espero que quando você estiver lendo esta carta, o tempo já venha com 3 ponteiros, ao invés de dois: minuto, segundo e alegria, indicando que é hora de sorrir mais. Mas espero mais ainda que você entenda que o tempo linear é menos importante do que o tempo que você quer que as coisas durem. Só agora me lembrei que talvez você nem saiba ler ainda. Não tem problema, deita aqui que eu te conto tudo antes de dormir.
Aos 56 - por Paulo Babboni
Meu amigo, hoje é dia 20 de agosto de 2020. Quanto ao 20, número pra jogar no bicho. Dois, o duplo, eu e você, eu e eu mesmo.
Está se cuidando? Terceira idade quase, não é moleza. Como anda o passeio ladeira abaixo? Está tomando direito os remédios, desencalhou a bicicleta? E a barba, conseguiu deixar crescer como a de um mujique russo para enrolar em duas pontas, como era meu sonho?
Se livrou daquelas noites no ateliê, forçando os olhos de míope para entregar as encomendas? Atencioso, detalhista, o alfaiate dos contos de fadas do Arouche...
Em 2020 serão 56 anos de idade, e se me conheço um pouco, estarei exatamente do mesmo jeito que sempre fui. Ainda me indignando com tudo, irritado com a maluquice das coisas e das pessoas, não vendo sentido em nada, mas cada vez mais apaixonado pela vida.
Uma carta miguxês - por Tiago Sousa
Blo Hrznte, 1.9.10
Oi MiGguXxo de 2020, fmz?
QrO t fLr q aKi em 2010 eh mtO lgl : )
A gNt tc Mto jg Mto e Qse n SaI do pC \o/
Hj em Dia A gNt fz td p web Te nMora : p
A GnT n gsta de enctr gnt soh tc c gNt ; )
Pq enctr? Na nEt a GnT faixx td atej v p cam (o)
A gNt tein vgnha de flr psslmnt nOxXa Voix e xtrnha
Ms tBm a gNt qse n uXa a noXXa voix neh? : /
nTao tah. VaUm fz o sgnte qDo vc lr issu mnda msg no IcMsOrTw e vamuxx tc
BjUxXx e BrAxXx MigGuxXo.
N sEi oq eh BjUxXX e BrAxXx ms td mndo fla iSSu…
Espero sinceramente não ter sido compreendido.
Saudações de 2010.
Sorvete - por Gisela Blanco
Querido Luisinho,
Quando escrevi essa carta você estava na minha barriga, prestes a sair. Ainda nem conhecia a sua carinha, mas agora você já deve ser um mocinho grande e independente, cheio de sonhos e muitas vontades. E imagino que eu já devo ter aprendido há tempos o que é realmente ser mãe. Espero que até hoje nós dois tenhamos sido bem unidos, carinhosos, alegres. Que a gente já tenha se divertido muito e queira fazer isso mais a cada dia. Espero que a nossa vida não tenha virado uma correria em que sobra cada vez menos tempo um para o outro.
Qualquer que seja o cenário, te faço um convite: topa passar o próximo fim de semana inteirinho comigo, assistir um filme legal, andar de bicicleta num parque bem bonito e tomar um sorvetão no final?
Amo você, mamãe
Esquecer uma pessoa com delete? - por Mari Avilla
Hoje é dia 24 de Agosto de 2010 e estou aqui aflita, pensando em como você estará neste mesmo dia daqui a 10 anos.
Tenho vivido uma relação de amor e ódio com a tecnologia. Ela me aproximou de muita gente mas, ao mesmo tempo, me distanciou do mundo real.
Hoje pessoas demonstram amor com apresentações de powerpoint, depoimentos no Orkut e "rostinhos apaixonados" no MSN. Porém não são capazes de dar um abraço, um beijo...
Isso pode piorar com o tempo?
No mundo tecnológico de 2010 podemos deletar pessoas que não nos correspondem no Orkut, podemos bloquear pessoas no MSN, podemos inventar um "perfil" que não seja nada parecido com o que realmente somos, podemos ter milhões de amigos em "nossa página" mesmo sem conhecê-los.
E no futuro? Teremos sentimentos, tato, paladar, olfato e visão? Isso ainda existirá em 2020 ou conseguiremos fundir o real com o virtual?
Já é possível esquecer uma pessoa com uma tecla de BLOCK ou DELETE?