Caramuru: 'Celebridades dignas desse nome'
Atingimos o ponto em que se é famoso pelo simples fato de ser famoso
A palavra celebridade vem do latim celebritate e, na origem, designava uma pessoa de boa reputação, dona de raras qualidades, digna, enfim, de ser celebrada. Não necessariamente, mas com frequência, aquele que era célebre era também um herói (do grego heroos), alguém notável por sua coragem, feitos incríveis, generosidade e altruísmo. Mas o tempo passou e agora eu perguntaria ao Luciano Huck, ou à Ana Maria Braga, ou ao pessoal da revista Caras: o que foi que deu errado no mundo de hoje?
Pois passou, mesmo, o tempo em que os heróis e as celebridades, aqueles que têm os nomes reverenciados, haviam sido “heróis de verdade”. Na maior parte dos casos, graças a feitos militares, mas às vezes como pessoas comuns que praticaram atos de heroísmo desinteressado, puro e simples. Algumas vezes, tamanhos eram os feitos praticados que, com o tempo, os heróis se tornavam semideuses, filhos de algum deus com uma pessoa. E também cabiam, no panteão das antigas celebridades, aqueles filósofos, cientistas, inventores, músicos, artistas ou escritores que, de alguma maneira, fizeram a roda girar. Claro, nem tudo era unanimidade: em certas ocasiões o herói de um povo seria visto como o carrasco de outro, e também houve situações em que o revisionismo histórico acabou por retirar boa parte da aura e do prestígio de um antigo herói. De uma forma ou de outra, porém, para ser visto como uma celebridade era preciso ter feito realmente algo excepcional, não raro com o sacrifício da própria vida.
Para ilustrar o parágrafo acima, eu poderia ter citado aleatoriamente figuras como: Ulisses; Alexandre, o Grande; Zumbi dos Palmares; Albert Sabin; Madre Teresa; Santos Dumont; Karl Marx; Mozart; ou mesmo algum diplomata, bombeiro ou soldado que tenha se arriscado para salvar vidas anônimas. Todos eles, cada um a seu modo, dignos de serem vistos como celebridades.
O problema é que, de algum tempo para cá, a renovação dos tais nomes reverenciados passou a trazer para o imaginário coletivo heróis que não eram bem heróis e estavam longe de ter o calibre dos mais antigos. Começaram a entrar para o clube atletas ou astros de rock muito bem pagos, ainda que de alguma maneira diferenciados, frequentemente influentes e eventualmente expostos a algum risco. Exemplos? Ayrton Senna, John Lennon, Bob Marley ou Pelé. Ou seja: no fim do século 20, os heróis ainda se destacavam por seus feitos, mas eram quase sempre patrocinados ou tinham salários milionários.
Zé Manés
Mas, conforme chegávamos aos dias de hoje, a coisa começou a liberar geral, e os nomes celebrados passaram a ser os de qualquer zé mané. Ou, melhor colocando: todo mundo passou a acreditar que tinha o direito a ficar famoso e ser reverenciado. Mesmo que somente por minutos, como na profecia de Andy Warhol. E mesmo que não tivesse feito qualquer sacrifício por alguma pessoa ou causa, ou tivesse construído alguma coisa minimamente relevante. Atingimos o ponto em que se é famoso pelo simples fato de ser famoso. Se cuidem, Aquiles, Nelson Mandela e Mahatma Gandhi, que os nossos são os tempos de Paris Hilton, Anitta e das inúmeras e efêmeras estrelas do Domingão do Faustão.
Tempos de música sem músicos, de arte sem artistas, de mensagens sem conteúdo (como aquelas que a gente vê no Twitter: “Fome, indo para a padaria”). Marshall McLuhan, apontando os poderes da indústria cultural no século 20, fez a conhecida afirmação de que o meio é a mensagem. Se ainda vivesse hoje, ele talvez tomasse um susto, pois agora nós chegamos aos incríveis tempos do meio sem a mensagem e das celebridades não celebráveis. É claro, não sejamos tão pessimistas: os velhos e verdadeiros heróis ainda existem. Só que eles têm, cada vez mais, andado em má companhia.
*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br |