Cadeia Nacional

Esta Trip quer olhar para as cadeias e para o sistema que as abastece e alimenta, para os presos, para quem está dentro e fora dos muros, para tudo o que há neste planeta aprisionado

por Paulo Lima em

Me lembro bem da primeira vez em que pisei num presídio, no finalzinho da década de 70. Como estudante de direito, não era tão difícil conseguir acesso. Fui assistir a uma peça de teatro encenada no Carandiru com o apoio de um grupo de artistas e técnicos voluntários. Alguns anos depois, voltei ao local, já como jornalista, para entrevistar Luiz Wolfman, então diretor do presídio, para as Páginas Negras da Trip (http://tinyurl.com/pusyonu), em dezembro de 1990. Entre outras iniciativas, Luizão havia instalado na cadeia uma academia de boxe na tentativa de criar espaço para que um diálogo mais fluido, ainda que travado à base de socos, pudesse existir entre a direção da instituição e os apenados. O ambiente era evidentemente tenso, mas o diretor, que incrivelmente na época residia no próprio presídio com sua família, andava pelos pavilhões sem qualquer tipo de escolta e falava com os presos como se estivesse em igualdade de condições com cada um deles. Em todos os sentidos.

Wolfman se orgulhava de dizer que aquela era a única cadeia em que o preso podia bater na cara do diretor sem medo de castigos que não fossem os contragolpes desferidos dentro das quatro linhas do ringue. Mesmo na mais absoluta precariedade, a tal academia começava a gerar campeões e atletas de nível profissional. Anos depois, voltei ao mesmo Carandiru para visitar o então "reeducando" Luiz Alberto Mendes. Preso ainda jovem, e analfabeto, Mendes havia conseguido não só se alfabetizar como ler obsessivamente durante anos a fio (graças a programas pilotados por voluntários e à sua enorme força de vontade) e, por fim, escrever e publicar um livro interessantíssimo chamado Memórias de um sobrevivente

Combinamos que Mendes se tornaria um colaborador da revista e assinaria uma coluna mensal na Trip, para que pudéssemos, dentro de nossas limitações, erguer uma ponte (lamentavelmente até hoje uma experiência isolada) entre o mundo livre e o encarcerado. Mendes está livre há cerca de 11 anos, continua assinando suas colunas na revista e no site da Trip, publicou mais três livros, ministra palestras e cursos, esteve pelo menos duas vezes no programa de entrevistas do apresentador Jô Soares, uma no Provocações, do saudoso Abujamra, entre outros diversos espaços de prestígio na mídia, além de participar de iniciativas de reeducação de presos aqui e ali, proporcionadas por órgãos como o Instituto Ecofuturo e a Funap.

Nas três visitas mencionadas, encontrei situações e personagens absolutamente fora do normal. Um voluntário aqui, uma ONG ali, um funcionário público excepcionalmente dedicado, uma pessoa com obstinação ímpar. Imaginar situações de reeducação lato sensu associadas à ideia de prisão no país é algo que chega a soar fantasioso. Com o enorme respeito devido às excessões como as citadas, que felizmente não são as únicas, o que se vê sob a rubrica de "sistema prisional" é um conjunto trágico que reúne descaso, corrupção, má administração de recursos, incompetência e outros vários naipes de ignorância numa longa e triste lista. Desgraçadamente, aliás, um coletivo de adjetivos que poderia igualmente ser empregado para qualificar outros diretórios nacionais como educação, saúde, transporte e saneamento, apenas para começar. E, pior ainda, nada disso é "privilégio" deste ou daquele governo, mas legados nefastos que, transmitidos como doenças hereditárias, percorrem décadas e décadas na linha da nossa história.

Esta Trip quer olhar para as cadeias e para o sistema que as abastece e alimenta, para os presos, para quem está dentro e fora dos muros, para tudo o que há neste planeta aprisionado que, apesar dos enormes esforços empreendidos visando sua total invisibilidade, está cada vez mais visível, caro, lotado, complexo, caótico e doente. E que retroalimenta as ruas com profissionais do crime mais preparados, mais desumanizados, mais letais e com menos a perder. Um enredo que, feliz ou infelizmente, agora se vê "reforçado" por novos atores que antes só se hospedavam em hotéis cinco estrelas e eram destaques apenas nas páginas de economia e política dos jornais.

 

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