O século otimista

Não aguento mais o século 21 e as terríveis perspectivas que ele nos apresenta

por André Caramuru Aubert em

Decidi passar as férias do último fim de ano no século 19. Por que tomei essa decisão? Ora, foi por estar bastante desanimado ultimamente com estes tempos de Trump, de renascimento de fanatismos e intolerâncias, de pancadão e de funk (isso sem falar na pornográfica política brasileira); e eu também não estava com nenhuma saudade do século 20, aquele que nos trouxe Hitler e Stalin, duas guerras mundiais, a bomba Hiroshima etc. Sei que você está pensando que isso é uma loucura, que a decisão que tomei foi absurda, pois todos sabem que o século 19 esteve longe de ser perfeito. Havia escravidão e colonialismo, e nem se pensava em aspectos fundamentais da vida atual, como dentista com anestesia, internet e smartphones. Tudo verdade. Mas eu tenho as minhas razões.

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O século 19 foi otimista como nunca mais conseguimos ser: acreditava-se que a ciência e a razão triunfariam sobre a religião e o misticismo; que a democracia derrotaria o absolutismo e a servidão humana; que os valores lançados pela Revolução Francesa e pela Independência Americana, de igualdade, liberdade e fraternidade, se tornariam universais. Foi quando viveu o Marx da esperança, não o que foi utilizado para criar alguns dos mais brutais regimes políticos do século seguinte. Foi o século de Charles Darwin, que virou de ponta-cabeça um monte de crenças. Teve a primeira revolução escrava bem-sucedida nas Américas, criando a promissora república do Haiti (onde daria tudo errado, mas isso não era então o que parecia). Teve o exército de Simón Bolívar libertando a América espanhola. A Europa de Beethoven, Goethe e Monet, onde Napoleão Bonaparte (que, como diria meu pai com seu forte sotaque, “non erra nenhuma santo”) implantou um código legal que ainda é base da legislação de boa parte das nações modernas e ajudou a varrer do mapa um bom número de emboloradas monarquias. E ainda teve, conforme já escrevi há tempos nesta Trip, o rei Kamehameha visitando D. Pedro I e inaugurando as relações entre Havaí e Brasil.

O inventor da ecologia

Contudo, de todas as pessoas do século 19 com quem convivi no fim de ano, de quem mais gostei foi o hoje relativamente esquecido Alexander von Humboldt (1769-1859). De tudo o que este genial, multidisciplinar e incansável cientista alemão trouxe ao mundo, o que mais me impressionou foram duas coisas que muita gente ainda hoje reluta em aceitar. De origem prussiana e nobre (exatamente o público que, cem anos depois, seria uma das bases de Hitler), Humboldt não era apenas um abolicionista: ele afirmava categoricamente que racismo, mais do que moralmente errado, era burrice. Defendia que todas as pessoas de todas as origens tinham o mesmo potencial para fazer arte e ciência, desde que dispusessem de condições para isso. Viajando pelas então colônias espanholas, onde os povos indígenas haviam sido massacrados e reduzidos a condições análogas à escravidão, ele não demorou a concluir que, em inúmeros aspectos, os conhecimentos de maias, astecas e incas, e mesmo de menos glamorosos povos das florestas, eram muito superiores aos dos conquistadores espanhóis.

Outra sacada genial de Humboldt foi perceber que a Terra é um organismo complexo em que tudo se relaciona, que um desmatamento aqui pode secar um rio ali, mudar o regime de chuvas acolá, e assim por diante. Em poucas palavras: Humboldt inventou a consciência ecológica, enxergando antes de todo mundo algo que hoje parece óbvio para alguns (para saber mais, leia a biografia escrita por Andrea Wulf, A invenção da natureza, ed. Planeta, 2016), mas que ainda é negado por um número impressionante de pessoas, a começar pelo mais novo presidente norte-americano. É, não aguento mais o século 21 e as terríveis perspectivas que ele nos apresenta. Assim que der, viajo novamente aos tempos otimistas do 19.

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