Acervo da Laje é casa, escola e museu

Espaço no Subúrbio Ferroviário, em Salvador, reúne obras de artistas locais, que ganham importância e relevância no cenário artístico baiano

por Guilherme Soares Dias em

Um sobrado sem pintura em meio a tantos outros que se enfileiram na beira da Enseada do Cabrito, em Plataforma, bairro localizado no Subúrbio Ferroviário, em Salvador, guarda tesouros inesperados. A casa abriga o Acervo da Laje, um museu gratuito, que reúne e organiza obras de artistas de uma das regiões mais pobres da capital baiana, rica, porém, em cultura. São mais de 4 mil peças entre quadros, esculturas, livros, fotos, croquis, jornais antigos, conchas, azulejos e artefatos históricos.

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Diferentemente do que ocorre em um museu tradicional, onde monitores recebem salários e treinamentos para receber o público, quem recepciona os visitantes por aqui são os próprios donos da casa: Vilma Santos e José Eduardo Ferreira Santos. O sorriso no rosto e a paixão no olhar são marcas do tratamento dispensado a quem os visita. Eles apresentam as obras explicando com orgulho o acervo que construíram reunindo obras de diferentes artistas da região. Alguns renomados, como Reinaldo Eckenberger — argentino radicado em Salvador desde 1965, morto em agosto passado —, dividem espaço com nomes pouco conhecidos e até alguns que se descobriram artistas a partir do interesse do museu em expor suas peças, como é o caso de Indiano Carioca. Há ainda obras de Zaca Oliveira, Almiro Borges, Otávio Bahia, Ivana Magalhães, entre outros, além de azulejos de Claudio Castro e Prentice Carvalho.

Crédito: José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos são os anfitriões no museu Acervo da Laje, que começou na casa deles, onde ainda fica uma das sedes, mas ganhou um espaço maior para continuar escrevendo essa história

“Nós queremos contrapor essa ideia de que museu tem que ser estático. Queremos dialogar com nosso entorno e construir uma narrativa diferente do Subúrbio. Esse espaço nasce da inquietação de quem não está conformado com aquilo que é escrito sobre nós. É um ato de amor conosco e com a cidade”, afirma José Eduardo. Pelo local, passam estudantes de escolas públicas e de projetos sociais, que lá conhecem mais da arte produzida na região e entendem outras possibilidades do próprio lugar em que vivem.

História local

A ideia de criar o acervo surgiu no dia da banca de defesa do doutorado de José Eduardo. Na tese, ele tinha estudado o impacto das mortes de jovens na periferia. Depois de questioná-lo sobre o trabalho, Gey Espinhosa, um dos professores presentes, o provocou dizendo que, após se debruçar sobre os problemas da periferia nos projetos de mestrado (em psicologia) e doutorado, era hora de se dedicar a estudar a beleza do lugar onde nasceu e cresceu.

O espaço do Acervo da Laje recebe frequentemente a visita de estudantes de escolas públicas - Crédito: Heitor Selatiel

Desafio aceito, José Eduardo começou a pesquisar e a juntar peças a partir de uma pesquisa sobre a arte na periferia e a dedicação foi tanta que precisou reservar um espaço de sua casa para o material. Até que uma casa virou pouco. Hoje, o museu que foi o primeiro da Suburbana conta com dois espaços: a Casa Um, com uma biblioteca e duas salas com diversas obras; e a Casa Dois, com três pisos com obras e um espaço para receber aulas — a escada que leva de um andar para outro é repleta de azulejos históricos. A Casa Dois tem vista para a Enseada do Cabrito, onde barcos de pescadores da região estão estacionados, e para o trem que, além de dar nome e vida ao subúrbio, o conecta ao centro por R$ 0,50.

Histórica, a via férrea levou o escritor Euclides da Cunha para Canudos, foi cenário  na década de 60 do filme Tocaia no asfalto, e hoje leva os visitantes para o Acervo da Laje. A ponte que permite o trem passar por cima do Atlântico pode ser vista da sacada do museu e, durante o pôr do sol, trem, ponte e mar são iluminados por uma luz alaranjada que proporciona um momento mágico.

Fica, tem arte

Aberto para visitação desde 2011, o Acervo ganhou maior visibilidade na Bienal de Arte da Bahia de 2014, quando foi um dos espaços expositivos com programação contínua e viu as visitas se multiplicarem. Atualmente, além das exposições no próprio espaço, organizam mostras em outros locais espalhados pela capital baiana. “A arte da periferia, que era invisível, agora tem o seu espaço. As pessoas não conseguem conciliar na mesma frase beleza e subúrbio. Geralmente remetem ao lugar pela falta e não pelo que existe. O que protege da violência é justamente a beleza”, afirma José Eduardo.

O tal sobrado do início do texto continua sendo a casa do idealizador do Acervo da Laje e de Vilma, sua companheira, que mantêm um quarto para receber visitantes interessados em se hospedar no local. “Uma casa é produção de conhecimento, de onde emana a vida da cidade. É uma revelação do mistério que cada um de nós temos: tem uma poética própria e nasce do esforço e sacrifício com muitas mãos. A nossa não é diferente”, reforça José Eduardo.

As obras, quando expostas, são compradas pelo acervo, mas a maioria chega mesmo por meio de doações ou são artigos achados em lixos da região. Do quadro do palhaço triste à representação dos orixás em madeira, o espaço é diverso. Nenhuma das peças está à venda, mas eles planejam ter um bar e comercializar também azulejos. A cada ida, um acervo novo é revelado. É possível descobrir novas peças, novos detalhes, novas histórias, novos sorrisos, além do que são premissas desse espaço: mais afeto e mais beleza do Subúrbio.

Para conhecer o que a periferia soteropolitana tem – de belo –, você pode agendar visitas pela página do Facebook. O espaço funciona das 9h às 18h e a entrada, embora seja gratuita, pode ser paga por iniciativa própria. O Acervo da Laje aceita colaborações para manter o espaço independente.

Vai lá: www.acervodalaje.com.br

José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos são os anfitriões no museu Acervo da Laje, que começou na casa deles, onde ainda fica uma das sedes, mas ganhou um espaço maior para continuar escrevendo essa história - Crédito: Heitor Selatiel
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