À deriva no oceano do racismo e do ódio
"A internet amplia o alcance do trabalho de artistas, mas, quando se é preto, bastam alguns cliques para se afundar no mar do discurso violento e racismo recreativo", reflete o artista Gleyson Borges
Acredito que a minha arte é sempre um início de conversa que eu não sei como termina, porque o final dela está na vivência de quem se depara com a obra. E cada pessoa é um oceano inteiro. Mas quando essa arte vai para as redes sociais — uma junção de oceanos onde se está permitido falar o que bem entender por trás de uma tela —, vestígios dessa interpretação sobem para a superfície e ficam boiando à deriva, em forma de um discurso que fede quase sempre.
Como artista urbano, trato a rua como um museu aberto 24h por dia, sete dias por semana. Colar lambe-lambe nesse ecossistema vivo é uma parte fundamental do meu trabalho, que, desde 2018, visa trazer reflexões à negritude. Apesar de estar na rua ser essencial, há uma limitação geográfica óbvia, já que para ter a chance de se deparar com uma de minhas obras é estar em Maceió. Neste aspecto, as mídias sociais são um amplificador que permite que a arte de rua chegue para pessoas de outros lugares.
Em 2018, também comecei a documentar meus lambes no Instagram. Ganhei seguidores e, aos poucos, foi se formando uma comunidade que se interessa e/ou se sente representada pelas minhas obras — até que a minha arte furou a bolha do meu perfil pessoal.
Aconteceu a primeira vez em 2019, quando uma arte minha foi repostada pelos perfis Mídia Ninja e Quebrando o Tabu, para seus milhões de seguidores. Era um lambe com uma provocação: quantas pessoas negras têm no seu filme favorito? Fiquei em êxtase. Era a chance de ter visibilidade e ver meu trabalho chegando para mais pessoas. Coisa linda… Até eu ler os comentários.
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No começo, eram apenas algumas pessoas respondendo à pergunta, falando como amam Pantera Negra ou A Cor Púrpura — ok, tudo bem, pensei. Mas depois foi ficando ruim. Bem ruim.
– “Que pergunta racista”.
– “Por que isso importa?”.
– “Isso é racismo inverso”.
– “No meu tem apenas pessoas”
– “Nenhuma kkkkk”
E foi daí para pior. Saí do estado de felicidade de ter minha voz expandida e fui direto para uma espiral de ódio e racismo, onde a cada comentário eu me sentia pior.
Mesmo assim não conseguia parar de ler, talvez na esperança de que em algum momento a maré iria virar e eu iria perceber que esses discursos eram a exceção. Mas não eram. Ao invés de a maré ficar limpa, tinha coisa pior vindo do fundo. Não que os comentários valiosos não apareciam, mas era como se eles não fizessem barulho o suficiente, e só o que ecoava na minha mente eram as ondas de discurso violento, o suprassumo do racismo recreativo.
A onda foi tão forte que esse mar bravo invadiu meus perfis pessoais. No TikTok, um desses vídeos replicando meu trabalho alcançou quase 2 milhões de pessoas — e lá a experiência foi ainda pior. Basta usar uma foto do Coringa e um @ do tipo “@100%patriota” e pronto: você está equipado para destilar ódio à vontade. O pior golpe veio de um comentário que nem palavra tinha. Um perfil juntou o emoji 🐒 com outro 🔗e conseguiu fazer um estrago imenso. O racismo se adapta fácil demais.
Me encontrei então em um lugar estranho. Encontrei meu trabalho em um lugar de maior visibilidade, impactando mais pessoas. Mas, ao mesmo tempo, o retorno desse alcance vinha traduzido em forma de violência. Então é isso? Mesmo quando a gente ganha, a gente perde?
Talvez só dê para perder, e o mais perto de ganhar é continuar jogando. Então que seja. Antes de ser artista, eu sou um homem negro. E meu primeiro compromisso é (ou pelo menos precisa ser) com a minha sobrevivência. Seja ela física, mental, política ou econômica.
Então vou fazendo o que dá. Evito ler comentários. Quando leio, tento tirar uma onda. E quando me atinge, tento dar um tempo. É sobre se blindar, esquivar e defletir. É estratégia. Talvez não funcione, mas o importante é se movimentar.
Pode parecer que estou renunciando a ler comentários interessantes e ter conversas valiosas, mas, na verdade, eu NÃO estou abrindo mão da minha saúde mental, da minha sobrevivência e da continuidade da minha arte. Isso não dá para negociar.
Créditos
Vulgo “a coisa ficou preta”, Gleyson é um artista alagoano de lambe-lambe que acredita que a arte é um canal potente na luta antirracista e na busca da autodescoberta e emancipação de pessoas negras.