Água pesada
Compartilhar X Acumular: o choque entre a onda do consumo consciente e o tsunami da ostentação
Na Terra de contrastes de Roger Bastide, nosso velho conhecido, talvez caiba mais um novo capítulo. Agendas das mesmas casas de shows andam alternando reservas de palcos para grupos aparentemente antagônicos. De um lado ídolos da música nascida nas periferias expressam nas letras a dureza e a indignação dos que vivem das sobras no país. Do outro, shows de figuras que batem no peito e gritam com toda a força o fato de terem conseguido não só o conforto de um teto ou uma televisão de tela plana, mas que celebram a conquista daquilo que aprenderam desde cedo a entender como a melhor expressão da vitória, da aceitação e da boa vida. Lamborghinis, cordas de ouro puro, maços de dinheiro, roupas grifadas e mulheres exuberantes também cobertas de joias. Em comum entre as duas faces dessa medalha (de ouro), além dos bonés e de uma situação econômica melhor resolvida por conta do sucesso, a revolta contra governantes, políticos e a gestão cafajeste que eles impingem. Também a revolta contra os símbolos e as instituições deste Estado, muito especialmente a polícia. Nesse aspecto, variam os símbolos, mas o recado não. Mensagens, diga-se, que fazem eco com aqueles ouvidos nas ruas em junho, vindos da classe média que arrumou vaga nessa faixa da pirâmide há mais tempo.
Milhares de movimentos, iniciativas e ideias, mais e menos sérias, são lançadas todos os dias, alertando para a necessidade de se rever a lógica do consumo enlouquecido e do ter como solução para as angústias da geral. Compartilhar mais e acumular menos seria uma das chaves para um ponto de equilíbrio. Na contramão, milhões de pessoas celebram o fato de “estarem podendo” finalmente entender que graça tem ter (e ostentar) alguma coisa. Para aumentar a pressão, um Estado inábil, corrompido e incapaz.
Um encontro de águas invocado. Ondas tão violentas que têm produzido uma energia difícil de conter e que incluem, em seu rastro, inveja, ódio, conflitos e mortes. É nessa pororoca moral brasileira que a Trip mergulha e tenta decifrar mais uma vez.
Paulo Lima, editor