Alejandro Zambra não gosta de entrevistas
Criado no Chile durante o regime de Pinochet, o escritor reflete sobre o momento de ascensão conservadora que vivemos e sobre os conflitos entre o individual e o político
INSCREVA-SE EM NOSSO CANAL: youtube.com/trip
Querido pela crítica e pelo público, Alejandro Zambra é internacionalmente reconhecido como um destaque da literatura atual. Criado no Chile durante o regime de Pinochet, viveu a liberdade da adolescência e a descoberta da escrita na rigidez da ditadura, mas não pode imaginar o que é ser censurado.
Em conversa com a Trip, ele fala sobre como lidamos com o passado, como isso se reflete no momento de ascensão conservadora em que vivemos e sobre os conflitos entre o individual e o político: "'É muito fácil tornar-se cúmplice".
Trip. Você mora no México, não? Por que decidiu se mudar para lá?
Alejandro Zambra. Bom, não há muito o que explicar, mas morava em Nova York, conheci uma mexicana pela qual me apaixonei e fomos viver no México. Não tem uma explicação muito maior do que essa.
E faz quantos anos que você está fora do Chile? Faz quase 3 anos. É a primeira vez que vivo sem passagem de volta. Então, é a primeira vez que realmente vivo em outro país. Antes, fiquei fora do Chile durante um bom tempo, em Madrid e em Nova York, mas agora não sei se vou volto para o meu país.
Essa decisão de deixar o Chile é forte, não? Sim, mas agora acredito que não me sinto tão longe do Chile como das outras vezes. Quando morei em Madrid em 2002, tinha que buscar o cartão telefônico mais barato para ligar, ir a uma lan house para estar mais em contato. Agora, tenho a sensação de que, mesmo estando fora, há uma experiência falsa de pertencer que, por outro lado, é irresistível. De acordar, poder ler as notícias chilenas. Faço isso sempre, o que me desloca um pouco, me faz experimentar um lugar ligeiramente diferente. Então, às vezes leio as notícias mexicanas. Mas, claro, quando você está em outro país, seus amigos, sua família, aparecem em outra intensidade. Tem amigos que você perde. Ou põe essa amizade entre parênteses, e isso é muito esquisito. Tenho um punhado de amigos que gosto muito, preciso muito, e que não estão dispostos ao contínuo intercâmbio de mensagens. Então, os perco um pouco quando não estou no Chile, e, quando vou para lá, nos vemos muito, colocamos o papo em dia. Esses são amigos que experimentam a amizade como ela acontecia há 20 anos, ou há 10 anos. E, por outro lado, tem pessoas que estou em contato diário, e acredito que essa experiência de contato seja um pouco falsa. Mas também tem a sua beleza.
Tem alguma beleza nos relacionamentos digitais, então? Sim, essa magia. Outro dia, meu filho estava falando com a avó materna usando o smartphone da minha esposa. Ao vê-la, se encheu de alegria, e fez uns ruído que só ele faz para ela. Imediatamente, com seu dedinho, ele se aproxima da tela, toca na tela, e descobre que é uma tela e se põe a chorar como nunca. Foi muito impressionante essa imagem. Ele se lembrou dela, desfrutou de uma renovação da sua presença, e logo tocou a tela e se pôs a chorar, pois entendeu algo muito doloroso, provavelmente sobre a presença e a ausência. Poderia falar dessas coisas o tempo todo, me interessa muito mais do que falar de literatura.
Você vê poesia em tudo ou há lugares onde não há poesia? Bom, tenderia a responder que não, que há lugares onde não há beleza possível, mas também gostaria de pensar que tudo tem a ver com o tanto que uma pessoa consegue se aproximar dos outros. Incluindo as pessoas que, teoricamente, você detesta. Eu gosto de pensar que há um ponto em que um não seria capaz de compreender o outro, mas, sim, de vê-lo, por mais que não concorde com ele. Não tenho certeza. Realmente acredito que, constantemente, eu trato de sair da condição de microclima. Não sei, se me pergunta se as pessoas lêem e eu deveria responder que sim, porque nos limites da minha experiência todo tempo vejo gente que lê muito, então poderia acreditar que essa é a realidade, que em todos os lugares todo mundo está lendo, mas claro que não é assim. São as distorções da experiência. Se eu trato de sair desse pequeno especismo e – não sei o que você me perguntou…
Se havia poesia nas coisas todas ou se em alguns lugares não há. Eu acredito que há lugares onde não há nada de poesia, e, por algum motivo, me interessa aproximar-me desses lugares também. Mas não é fácil, porque, como te digo, há os limites da própria experiência que existem ainda que você não queira ver.
Você me falou do seu filho e de alguma maneira ele viu uma espécie de farsa em tudo isso. O que está um pouco relacionado também com a sua literatura. Como é essa experiência da sua literatura, agora que você é pai? É impensável o político sem o pessoal, sem o íntimo. Isso de… não sei, compartilhar todos os dias, construir valores, é impossível de pensá-lo sem projetá-lo. E também muito tentador, não? O individualismo aplicado ao núcleo mais próximo, à família. Essa ideia do pai e da mãe que estão completamente centrados na família e o resto pouco lhes importa. Mas, eu digo, por exemplo, esta ideia modelo dos anos 80 do pai que leva adiante sua família e que não lhe importa a política. Essa visão completamente desideologizada da qual se nutre todo governo totalitário. Essa é a armadilha básica da família. Como conciliar a alegria com o ceticismo? Acredito que isso é um trabalho, um desafio enorme. E me parece que esses são desafios cotidianos e, bom, quando você tem um filho, você também se compara muito com esse filho. Como você foi educado, a respeito de como quer que ele seja educado. Inclusive, ao dizer isso, me parece um pouco estúpido… Educar alguém: o que é isso?
Enrique Symns disse que a escola é a passagem da criança para a vida adulta e que, nessa ditadura, os professores são os cúmplices dos pais por executar esse processo de normalização. Eu entendo assim também, e, por isso mesmo, celebro muito as exceções. Eu me lembro claramente, ou seja, poderia dividir todos os meus professores ao menos em três grupos: primeiro, o dos completamente intransigentes e que sabiam que estavam experimentando um péssimo trabalho, que absolutamente nada lhes agradava, então tratavam de fazer o tempo passar rápido. Segundo: Os muito ruins. E, em terceiro lugar, os muito bons, que nem eram muitos. Mas foram esses muito bons que me transmitiam algum tipo de incerteza que eles mesmos tinham. A normalização, claro, vale pra tudo. Educar se confunde muito rapidamente com treinar. É muito difícil tudo isso, mas o interessante é essa dificuldade, que não te permite baixar a guarda.
Hoje vivemos uma espécie de sentimento de conservadorismo no Brasil. Eu me pergunto… Se pergunta o porquê de estar aqui, né?
Um pouco, e até que ponto você pode ser cúmplice disso? Bom, eu fui criado integralmente no contexto de uma ditadura. Mas, paradoxalmente, me sentia livre. Como minha teórica liberdade começou na adolescência e, claro que não era na democracia que tivemos, no começo era muito deficiente, mas era fácil confundi-la com uma liberdade de verdade. Fui criado em uma ditadura e fui entendendo isso de formas muito concretas em diferentes momentos da vida, mas não consigo imaginar, por exemplo, que alguém me censure hoje. Não consigo imaginar porque fui criado na censura, mas logo escrevi e vivi com a escrita em um tempo de extrema liberdade. Não posso imaginar que alguém coloque limites ao que eu quero expressar. Então, aí tem um ponto. Acredito que a resposta à sua pergunta tão concreta seria que sim, é muito fácil tornar-se cúmplice. Que isso chama à ação.
Qual é o papel do escritor ante a essas situações? O papel, como sujeito, é somar. Eu não acredito no escritor como um eleito. Você está em um lugar, você está lendo a sociedade, também estão te lendo nesse contexto. E não creio que ninguém seja obrigado a falar de nada, mas, em um mundo como este, é preciso se pronunciar, não? Acredito também que o escritor é um trabalhador e, como tal, pode entrar em diálogo com outros trabalhadores. Ou seja, o que disser não será mais importante do que digam outros trabalhadores. Mas, como trabalhamos com as palavras, muitas vezes conseguimos aglutinar opiniões, vozes. Fernando Pessoa diz: "Combater é renunciar a combater-se". Há uma necessidade preliminar se você quer combater dentro de você mesmo também, não? O que há dentro de você que você quer combater nos outros? O que há de autoritarismo em si mesmo? Em sua micropolítica, em sua forma de atuar com seus seres imediatos, seus entes queridos? Acredito que seria muito relevante que todos fizessem essa reflexão.
O que te levou a escrever Múltipla escolha? Pensei em escrever um livro que fosse desse tempo, início da década de 1990, período em que fiz a Prova de Atitude Acadêmica — no Brasil, há uma prova muito parecida. Pensei, então, que muitas pessoas que trataram de dominar os conhecimentos para serem aprovados numa prova com essa estrutura talvez nunca tenham se interessado em dominar a estrutura de um conto ou aprender a escrever um soneto, nada muito literário. Estavam interessados em dominar esse teste linguístico, com exercícios que têm uma mecânica, uma lógica e que decifram o seu destino, porque o seu futuro depende de seu desempenho nessa prova. Fiquei imitando a voz dos professores, imitando a voz das pessoas, é muito prazeroso isso, não? A imitação. Mas rapidamente me dei conta de que também estava imitando a mim mesmo, porque eu, por outro lado, era esse jovem de 17 anos que tratava de dominar essa estrutura e, sim, queria ir bem, triunfar, ter a resposta correta. Então, tudo se tornou muito mais complexo e me dei conta de que esse era o livro. Como falávamos antes, éramos muito mais treinados do que educados, não? Mas há um período na vida em que queremos que exista uma resposta única. Em todos os contextos: religioso, político... Há um momento em que estamos confortáveis quando há apenas uma resposta e, ao contrário, é mais difícil aceitar e saborear o momento da multiplicidade. Mas logo você se acostuma com a multiplicidade e você fica sem opções. Talvez seja o que está acontecendo agora no Brasil.
Você lembra da sua primeira noite de sexo, do seu primeiro amor e da sua primeira morte? Qual você escolheria para contar dessas três? O primeiro amor, acredito eu. Mas minha questão com essa lembrança é que tendemos a nos lembrar como se não fôssemos dar risada da pessoa que somos agora. Acredito que, aos 14 anos, estando muito apaixonado por uma garota, se alguém tivesse me dito que aos 40 e tanto isso seria uma experiência tão remota e que me pareceria tão estranho ter gostado dela, eu teria pensado que essa pessoa estava mentindo para mim e que era um filho da puta. Porque eu não era capaz de conceber uma vida sem ela. E me parece importante lembrar disso. Ou seja, não gosto muito da categorização do passado, porque, no fim, a única coisa que exibimos é nossa capacidade de esquecer. Mas falamos e acreditamos que nunca vamos renegar o que dissemos. Isso é estranho. Pensar que terei, sei lá, 50 anos, vou ver esta entrevista e vou pensar igual. No geral, sempre que vejo uma entrevista que dei, me sinto um imbecil. Porque não comecei a escrever para dar entrevistas. Sempre me parece que sou muito impreciso, muito tonto, e que não deveria dar entrevistas. Digo, por exemplo, que meu primeiro livro é muito ruim, mas nunca iria relativizá-lo, ou seja, é realmente muito ruim. Não voltaria a publicá-lo, nunca o quis reeditar. E se alguém me diz que quer lê-lo, faço todo o possível para impedir que essa pessoa o leia. Não é frescura dizer que é ruim, é porque ele é realmente muito ruim mesmo. Mas, por outro lado, eu necessitava publicá-lo. Era uma necessidade, um desejo. Já passou. Não vou ficar aí especulando o que teria acontecido se não o tivesse publicado, né?
Por um lado, sempre se critica na literatura essa ideia de sucesso. Mas, por outro, imagino que, mesmo quando está indo tudo bem, ainda deva existir uma fragilidade no escritor. Bom, é uma situação muito abstrata. Se você vai bem, o que você consegue é sempre um pouco mais de liberdade. Isso, sim, é real e é maravilhoso, e eu agradeço. Por exemplo: tinha 15 anos e estava na mesa de jantar escrevendo um poema, então passa meu pai dizendo: “Este menino não está fazendo nada, vá lá comprar o pão. Por que você está aí perdendo o tempo?”. E logo, do nada, você ganha um pequeno concurso literário do colégio e, então, de novo está lá na mesa escrevendo e seu pai diz: “Ah, está escrevendo”. Porque você demonstrou que escrever não era perda de tempo. Deixou de ser algo de menos, é isso que quero dizer. Ou seja, você tem um pouco mais de liberdade para gastar todas as horas que você necessita para escrever um livro, equivocar-se um monte. Te deixam perder mais tempo porque supõem que você não o está perdendo. Mas eu não submeto o ato de escrever a nenhuma pressão. Isso, sim, tem sido uma regra para mim, não me sinto obrigado a publicar um livro. Poderia viver sem publicar livros. Sem escrever, não creio que eu conseguiria. Escrever sempre foi muito importante, então, acredito que vou seguir fazendo sempre. Mas publicar é uma decisão totalmente diferente… Não é tão natural publicar. Desculpa, estou falando como se fosse uma sessão de análise.
ASSISTA: