Erica de Paula: sem padrões, por favor
Para a doula Erica de Paula, vivemos em um mundo de rédeas e regras. Seguimos padrões do nosso nascimento à nossa velhice. Por sorte a tecnologia - que contribuí para isso - também nos elucida
Inúmeros prazos, metas e expectativas sociais a respeito de quem devemos ser e como devemos nos comportar regem a nossa vida desde o nascimento. Antes mesmo de o bebê nascer, uma série de livros que ensinam os futuros pais a adestrá-lo corretamente figuram entre os maiores best sellers mundiais. Depois, ainda recém nascido, o bebê deve ter rotina para comer. Ele não pode simplesmente se alimentar na hora que sente fome ou sequer dormir a noite toda, pois deve mamar de 3 em 3 horas. Embora o choro seja a única forma de comunicação que ele conhece, ele também não pode chorar. Sua necessidade de colo e vínculo com seus cuidadores não é considerada tão legítima quanto sua fome ou uma fralda suja (afinal, o excesso de afeto pode deixá-lo “mal acostumado” no futuro). Alguns anos depois, a criança não pode fazer “birra”, a despeito do seu sistema neurológico ainda imaturo. Também não há mais tempo para observar a joaninha que passeia lentamente na folhagem, ou as pedrinhas coloridas da calçada. Atividades extracurriculares ocupam todo o tempo que os pais não podem dar. A criança aprende 5 línguas, mas não consegue identificar um sentimento. A escola ensina a passar no vestibular, mas não prepara para a vida. Crescemos sem saber questionar, afinal, educação e obediência são as únicos conceitos que importam.
Já adultos, a situação não é muito diferente. A mulher deve ter filhos para se sentir totalmente realizada. Mas ela não pode ser nova demais. É preciso se formar e ser bem sucedida no trabalho antes. Mas ela também não pode ser velha demais, pois a natureza cruel fez com que seus óvulos envelhecessem após determinada idade. O parto? Deve ser eletivo (traduzindo: marcado na agenda). Não há tempo para imprevistos como um trabalho de parto que não tem hora para começar e muito menos para acabar. É preciso tecnologia. Quando mais tecnologia e assepsia, melhor. É preciso agendar muitos horários para que esse evento ocorra de forma perfeita e ordenada: com o salão, com o fotógrafo, com os familiares que vem de outra cidade, com a empresa que vai entregar as lembrancinhas de maternidade, com o obstetra, com o anestesista, com o hospital. Mas com o bebê, ninguém agendou. Ninguém perguntou se ele estava preparado para a jornada do nascimento exatamente naquele dia às 16h.
Então a mulher é inserida em uma escala cirúrgica para integrar a linha de produção do nascimento. O parto deve ocorrer preferencialmente às segundas feiras, assim o pai pode aproveitar os 5 dias de licença paternidade corridas a que tem direito e ainda emendar com o final de semana (com certeza 7 dias para dividir os cuidados do seu filho recém nascido devem estar de bom tamanho). A cada meia hora, uma mulher ocupará aquela sala para trazer seu bebê ao mundo, enquanto os profissionais presentes conversarão sobre qualquer banalidade ou comentarão as notícias do dia. Não há tempo, espaço ou contexto para que seja feito o contato pele a pele precoce entre mãe e bebê, tão importante na primeira hora de vida (a chamada Golden Hour). Nem para que o bebê aprenda a sugar o seio materno enquanto a mulher libera aquele boom de hormônios que nunca mais irá se repetir na mesma intensidade durante toda sua vida. Mas não eram justamente esses os famosos hormônios do amor, em grande parte responsáveis pelo sucesso da amamentação e do vínculo entre ambos? O importante é que em 15 minutos haverá uma troca de plantão e é necessário “limpar o plantão” antes que o próximo colega chegue.
Não se pode questionar o sistema, a forma como as coisas funcionam, e muito menos o médico – pois ele estudou anos pra isso. Inclusive se ele disser que você não tem passagem antes mesmo do trabalho de parto começar ou que o seu bebê está com o cordão enrolado no pescoço, apesar do bebê não respirar pela traquéia. No hospital, você não deve gritar, pois isso assusta os outros pacientes e interfere na dinâmica local. As intervenções que são feitas na parturiente – aplicação intravenosa de hormônios artificiais, manobras violentas para empurrar o fundo do útero ou aquele corte mutilador na vagina não devem ser questionadas. Tampouco as intervenções que são feitas no bebê. Ele será aspirado de rotina quando nascer, receberá um colírio cáustico em seus olhos que acabam de abrir (mesmo quando sua mãe não tem nenhuma doença para lhe transmitir) e tomará fórmula porque algum erro da natureza fez com que não existisse leite suficiente. Ninguém ali tem nome. São apenas a mãezinha que está acompanhada (ou não) do paizinho e hospedados no quarto 345. A mulher que ousa romper com o sistema e vivenciar algo diferente é chamada de corajosa, louca, radical, diferentona. Quer ser melhor do que as outras ou virou adepta de alguma nova modinha (como se moda, como a própria definição da palavra sugere, não fosse justamente o que faz a maioria).
Por sorte, também vivemos na era da informação e das redes sociais. A mesma tecnologia que aliena também pode ser libertadora, se utilizada corretamente. Hoje, mais do que nunca, é possível se informar em profundidade sobre um assunto de interesse sem sequer sair de casa. Existem dezenas de grupos, redes de apoio, blogs especializados, periódicos científicos. Tudo ali, à distância de um único clique. Podemos afirmar com convicção que a informação é o maior agente empoderador disponível que existe. É como tomar a pílula vermelha e finalmente sair da matrix para descortinar um universo que nem se sabia existir. É poder retomar o protagonismo de cada uma das suas escolhas, para que estas sejam verdadeiramente conscientes. É poder descobrir, por exemplo, que o pré natal não precisa ser focado apenas na doença e em tudo que pode dar errado, mas que é possível participar ativamente da construção de cada decisão, afinal, é no seu corpo que tudo está acontecendo.
É se dar conta de que não existem apenas duas opções na hora de ganhar o bebê (uma cesariana marcada ou um parto violento e traumático). É constatar, através de centenas de relatos de outras mulheres empoderadas que já trilharam esse caminho, que o parto pode ser o evento mais incrível e transformador de sua vida. Que ele pode ocorrer de tantas formas quanto a diversidade humana é capaz de criar. E passar a encarar esse momento como um ritual de passagem profundamente desejado, e não apenas um mal necessário.
O mais bonito é perceber que quando esse rompimento com o que é culturalmente aceito por uma maioria acontece, esse costuma ser um caminho sem volta. Como diria Einstein: “A mente que se abre a uma nova idéia jamais voltará ao seu tamanho original”. Evidentemente que esse despertar de consciência pode ocorrer através das mais diversas experiências de vida, mas frequentemente acontece na gestação, quando os famosos pitacos são cruéis incessantes: a vizinha, a colega de trabalho, a sogra, o médico, a prima distante e até desconhecidos na rua – todo mundo parece saber mais sobre o seu corpo e o seu bebê do que você própria. Mas depois que uma mulher se empodera e é capaz de tomar as rédeas de suas escolhas, ela jamais voltará a ser a mesma, e isso certamente irá repercutir de forma irreversível no tipo de maternagem que ela vai exercer. Mas veja bem: não pela via de parto que ela teve, no final das contas, pois via de parto jamais definirá maternidade. Mas sim por todo o processo que ela precisou passar para lidar com esse sistema de gestação, parto e nascimento machista e aprisionador em um país como o Brasil. Seja qual for o desfecho de suas escolhas - um parto normal, humanizado ou uma cesariana - não resta dúvidas de que ela irá praticar uma maternidade muito mais consciente e questionadora do que a grande maioria. Ela não vai aceitar qualquer conselho externo que vai contra o que seu instinto está lhe dizendo. Dificilmente ela vai escolher o caminho mais fácil (que costuma ser também o mais prejudicial), pois, assim como acontece no parto, na maternidade frequentemente o melhor caminho também é o mais trabalhoso.
Não é fácil amamentar em livre demanda ou corrigir a pega errada do bebê abrindo mão de recursos como chupeta ou mamadeira, uma vez que estes são comprovadamente prejudiciais ao processo de aleitamento. Não é
fácil ir contra tudo e todos quando disserem que seu leite é fraco, sabendo que o leite artificial está ali na prateleira. Não é fácil estar disponível pra atender prontamente todas as necessidades do bebê (mesmo que estas sejam apenas afetivas, erroneamente chamadas de manha, como se o bebê fosse um ser manipulador). Não é fácil dialogar, conversar, se posicionar empaticamente e praticar uma disciplina positiva ao invés de colocar a criança de castigo ou dar uma palmada. O parto, assim como a maternidade, dá trabalho, cansa, testa todos os limites do ser humano. Mas quando você sabe identificar qual é o motivo de cada uma de suas escolhas, certamente você será capaz de enxergar as coisas de uma maneira muito mais ampla e profunda. E é exatamente isso que trará forças para te manter firme até o final, apesar de todas as dificuldades e sacrifícios.
É sempre importante reiterar que o objetivo dessa reflexão não é classificar nenhuma mulher como uma mãe melhor ou pior com base na forma como ela pariu ou está maternando. O mundo já está repleto de juízes e ninguém sabe em que contexto cada família está inserida nessa fase tão delicada da vida. Existem as recomendações do que é ideal, e existe aquilo que é possível dentro da realidade de cada um. O que faz a maior diferença, afinal, é a consciência com que as escolhas são feitas. E é disso que trata esse texto!
Erica de Paula foi homenageada pelo Trip Transformadores de 2015. Assista aqui a sua história.
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