Itamar Vieira: Ler é exercício de estar no lugar do outro
Autor do hit "Torto Arado" fala de Salvador, onde nasceu e foi criado, e discute o racismo e o papel da arte na sua vida
Um popstar da literatura, como há muitos anos o Brasil não via, Itamar Viera Junior virou um fenômeno quando viu seu romance de estreia, Torto Arado, bater todas as projeções de vendas, chegando a incrível marca de 165 mil exemplares lançados. O mais relevante autor do Brasil de hoje surpreendeu o mundo em 2018 quando lançou seu clássico instantâneo no prêmio Leya, em Portugal. Ali ele levou o primeiro de muitos outros troféus importantíssimos, como o Oceanos e o Jabuti.
Baiano, de 41 anos, geógrafo, doutor em estudos étnicos e africanos e pessoalmente batizado por Jorge Amado – essa história você escuta no episódio dessa semana do Trip FM – Itamar leva uma vida dupla: é funcionário público nas horas vagas, mas escritor por vocação. “Esse é o malabarismo que o artista precisa fazer no Brasil para sobreviver em meio a tudo”. No programa, o autor ainda fala de Salvador, onde nasceu e foi criado, e discute o racismo e o papel da arte na sua vida. Ouça o episódio no Spotify ou leia um trecho da entrevista a seguir.
Trip. Existe uma questão muito discutida que é a importância do título para o sucesso ou o fracasso de vendas de um livro. Eu queria que você falasse um pouquinho sobre Torto Arado. De que maneira você acha que o título pode ter ajudado?
Itamar Vieira Júnior. É engraçado, o mercado editorial leva em consideração inúmeras coisas para sugerir e escolher um título. Mas o autor vai sempre naquilo que lhe é afetivo e guarde algum significado para o livro. O pontapé inicial desse romance se deu quando eu li os autores da geração dos anos 30 e 45, que fazem essa abordagem interessante sobre o nordeste brasileiro. Ali nasceu a semente de Torto Arado, mas eu tinha 16 anos, não havia maturidade. De qualquer forma, eu vinha de muitas leituras e uma delas foi o poema "Marília de Dirceu", de Tomás Antônio Gonzaga. Eu buscava um título para o livro até que meus olhos pousaram no verso “O frio ferro do torto arado”. Esse arado é o arado da história. Esse título, então, surgiu faz vinte anos. Depois disso eu segui minha vida e quando comecei a escrever essa versão me veio o lampejo daquele título original. Mas foi uma escolha baseada apenas em afeto.
Como você conseguiu o tal lugar de fala? De onde veio o conhecimento do planeta interior do Nordeste? Meu pai foi criado no campo até os quinze anos. Meus bisavôs trabalhavam em uma terra em regime de servidão, como aparece no livro. Mas isso foi aqui próximo, em uma região muito diferente do sertão, em um lugar que chove muito, muito verde. Anos depois, já adulto, comecei a trabalhar de servidor público, no Incra, e viajar para o interior e outras regiões do estado, para paisagens muito distintas, passando pelo serrado, no oeste, pelo sertão e o pelo litoral. Nesse percurso, fiquei mais detido na Chapada Daimantina, trabalhando naquele lugar de uma natureza muito forte. Confesso que aquela primeira história – que eu escrevi quando era adolescente – não se passava no sertão, mas a Chapada me conquistou dessa maneira, porque eu via na história personagens que me encantavam por sua força e faria todo o sentido que a paisagem emanasse essa força também. Mas essa paisagem quebra um pouco a visão que a gente tem de sertão, porque em Torto Arado esse sertão tem muita água.
Eu queria que você falasse de ser criança em Salvador e sobre qual era a condição financeira da sua família. Salvador é uma cidade diferente. Em outros lugares, como São Paulo, quando a gente pensa em periferia, a gente pensa em lugares mais afastados, nas bordas da cidade. Salvador é uma cidade híbrida, a gente tem periferias coladas à bairros ricos. A minha infância eu passei no centro de Salvador, em uma avenida que se chama Vasco da Gama, entre engenhos antigos que viraram bairros de maioria negra. Era uma vida difícil. Meu pai e minha mãe tiveram quatro filhos e não possuíam educação superior; emprego era difícil. Meu pai fez muitos trabalhos improvisados. Não tinha livros em casa. Na verdade, tinha uma Enciclopédia do Estudante. Dez volumes que de tanto ler, aquilo foi sedimentando o gosto por descobrir coisas novas. Tinha um vizinho que estudava em uma escola muito melhor e que fazia empréstimos de livro para que eu pudesse ler. Eu fico pensando sobre o que era a cidade da minha infância e o que é a cidade de hoje. Era uma infância mais livre: a gente tinha a liberdade de brincar na rua, algo que também contribui para a imaginação e de alguma forma essa vivência volta na minha escrita.
Créditos
Imagem principal: Adenor Gondim / Divulgação