Celso Athayde: Sempre quis fazer revolução
O cofundador da Central Única das Favelas bate um papo com o ator e cantor Leo Jaime sobre como as periferias podem virar referência de potência, e não de carência
Aos dezesseis anos Celso Athayde já havia morado em três favelas do Rio de Janeiro. Quando criança, aos seis, viveu sob o viaduto de Madureira. Mas foi armado dessas duras experiências que ele se reconstruiu: foi camelô, descobriu o ativismo, fundou a Central Única das Favelas, a CUFA, e ainda neste mês de outubro levou o prêmio de Empreendedor Social do Ano pela Fundação Schwab.
Homenageado também pelo prêmio Trip Transformadores 20/21, hoje ele está à frente da Favela Holding, conjunto de empresas que tem como objetivo impulsionar o desenvolvimento de negócios e de profissionais nas favelas.
É sobre essa guinada vertiginosa – numa conversa não menos entusiasmada – que Celso e o ator e cantor Leo Jaime conversam e pensam juntos sobre o Brasil e como suas periferias podem virar referências de potência ao invés de carência. O encontro aconteceu no programa Prêmio Trip Transformadores 2021, que foi ao ar pela TV Cultura em junho, mas que agora você pode curtir também em áudio no Trip FM, disponível no player nesta página ou no Spotify.
Leo Jaime. Não sei se você se lembra, mas a última vez que a gente se encontrou foi no palco do Theatro Municipal entregando o prêmio Anu pra mostrar e trazer visibilidade a projetos que atendem a CUFA. Foi muito legal porque estávamos levando para o palco pessoas que se destacaram, fizeram ensino superior e voltaram para a periferia criando projetos.
Celso Athayde. Me lembro muito bem. Você apresentou um prêmio junto com a Fernanda Lima. E você foi brilhante, eu já era seu fã. Sou de Bangu, da Favela do Sapo. Tinha um cassino por lá e durante muitos anos eu dancei o teu som. Te encontrar no palco foi um momento muito bacana na minha vida e na vida da CUFA.
Pra mim foi muito importante participar da premiação porque fico achando que no percurso da minha vida pode ter sido tudo em vão, que a gente não conseguiu mudar nada na realidade brasileira. Você falou da sua origem na Favela do Sapo, mas antes disso você chegou ao Viaduto de Madureira. Queria que você contasse isso. A gente sempre sonha e normalmente não vê um número significativo de pessoas que nos façam acreditar nessa mudança. Sou de um bairro chamado Olinda, na Baixada Fluminense, de uma cidade chamada Nilópolis, de uma favela chamada Cabral. Meus pais se separaram quando eu tinha 6 anos de idade e ambos eram alcoólatras. Eles brigavam todos os dias, eram brigas muito violentas e ali eles tiveram a última briga deles. Minha mãe resolveu ir embora de casa. Ela sempre voltava porque sabia que tinha dois filhos e pensava que na rua passaríamos necessidades muito maiores do que as que já tínhamos. Nesse dia, ela não voltou. Foi morar embaixo do viaduto Negrão de Lima em Madureira e ficou ali durante seis anos. Dos 6 aos 12 anos de idade era ali que a gente morava. Teve uma grande enchente no Rio uma vez e fomos remanejados para o abrigo Pavilhão de São Cristóvão, que hoje é a feira dos paraíbas. Aos 14, fui então para a Favela do Sapo. Meu irmão foi assassinado e a gente continuou nossa luta e eu voltei depois para Madureira, na condição de camelô, no mesmo viaduto onde tinha vivido. Ali, começo a juntar os camelôs todos e fazemos festas em datas comemorativas como Cosme e Damião, Natal, e é meu primeiro encontro com aquele espaço que tinha sido meu abrigo, vira uma grande festa. Sempre quis fazer uma revolução com aquela rapaziada.
É curioso que você transformou o lugar em que passou seis anos da sua infância em espaço pra você se lançar e mostrar o seu sonho. Podia ser um lugar de lembranças ruins, mas você conseguiu não só ressignificar, mas transformar o espaço. Como é que você manteve o sonho vivo? A vantagem do período em que vivi na rua era que eu tinha minha mãe do meu lado. Apesar da relação com o álcool, ela era nossa grande referência, prezava muito pela honestidade. Um dos valores mais expressivos das periferias é justamente a moral, a ética e os códigos de lealdade. Obviamente, as notícias que mais circulam são de uma minoria que acaba se transformando numa anomalia moral por conta das anomalias sociais ali. Pior do que morar na rua é nascer na rua, eu tive essa vantagem. Mesmo morando na rua, eu tinha medo da rua. Tinha medo da disputa do lugar para dormir, e aquilo podia custar sua vida. Quem nasce na rua nem tem esse medo. Eu sempre sonhei em ser rico, achava que tinha nascido no lugar errado e precisava encontrar meu castelo. Eu sempre soube que seria rico, sem nenhuma habilidade ou objetivo. Um tempo depois, percebo que minha habilidade era aquela de juntar gente, fazer festa com elas e desejar uma revolução. Lembro que o Bagulhão, do Comando Vermelho, deu pra gente ler “Guerra e Paz”. Eu não sabia ler e ele deu um prazo de seis meses pra fazer uma arguição. Quem não tivesse lido tomaria tiro na mão, então obviamente tentei aprender a ler rápido, mas não consegui. O tempo passou, ele não deu tiro na mão de ninguém, mas comecei a fazer rap pra fazer a revolução.
O rap teve protagonismo no mundo todo. Não vejo aqui tocando no rádio músicas que falem da nossa realidade. O rap sempre fez isso, mas virou nicho. É como ser negro. A gente tem que ter orgulho de ser negro, mas a gente não pode apenas ser negro, porque senão você vira nicho também. Quando um homem vai à Lua, ele vai à Lua. Quando um negro vai à Lua, é um negro indo à Lua. Então a gente precisa se colocar no lugar onde está todo mundo. A gente não pode aceitar que nos coloquem em uma caixinha, como fazem com os pretos em partidos políticos, racializando os votos.
Celso, eu escrevi “ela não gosta de mim, mas é porque eu sou pobre”, ou “você vai de carro pra escola e eu só vou à pé”. São músicas que falam da dificuldade do jovem que não tem dinheiro em se sentir merecedor de amor. Eu acho que há uma relação grande entre a desvalia do indivíduo com sua incapacidade de ver o seu lugar no mundo. Como é que a gente pode fazer? Dando exemplo? A gente faz tudo na vida pensando na tal da mobilidade social. Quando sua mãe manda você estudar, ela tá pensando que você vai ser uma pessoa com mais poder aquisitivo a partir de um emprego melhor. Seja qual for o conselho que você receber, estão sempre pensando em como é que a sociedade vai abrir as portas pra você. Particularmente, não acredito numa sociedade em que todo mundo vá ser igual. Eu acredito que a gente pode lutar por uma sociedade em que o filho do dono do prédio e o filho do porteiro tenham a possibilidade de sonhar com melhores alternativas. Hoje eu tenho 25 empresas e eu falo favelês. Imagina se as pessoas que vêm de onde eu venho tivessem aulas de negócios na favela. Elas teriam muito mais oportunidades e alternativas. O fato é que a gente tá sempre estudando para ser motorista do filho do patrão do meu pai. Essa pirâmide não muda e ela está formatada para não mudar. Falta de dinheiro causa até fim de casamento. Ninguém quer ser pobre não, gente! Tem questões afetivas em ficar ou sair da favela, então você sai, como fazem os jogadores de futebol. E a falta de dinheiro faz com que você não consiga tratar dos seus dentes, da sua saúde, sua família não consiga se alimentar bem… Não dá para ser feliz assim. Ter dinheiro não significa que você vá ser feliz, mas que vai conseguir cuidar melhor das dores da vida.
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