Angelita Gama, a primeira cirurgiã mulher do HC
Aos noventa anos, a médica que acumula pioneirismos fala sobre os muitos 'não' que ouviu na carreira, o período de 50 dias em que ficou entubada com Covid-19 e a infância na Ilha do Marajó
Quando entrou na faculdade de Medicina, em 1952, Angelita Gama já estava acostumada a receber nãos. O desejo dos pais era de que ela seguisse a profissão das irmãs, que eram professoras. Impulsionada pelas amigas que fez jogando vôlei, Angelita não acatou a vontade da família e encontrou a sua vocação na Universidade de São Paulo, a USP. Mais tarde, ao optar pela residência em cirurgia, uma área absolutamente masculina, ela encontraria outra barreira: o chefe da cadeira na época pediu para que ela não fizesse a prova. Foram necessárias ligações para os diretores da faculdade para que liberassem ela a prestar o concurso. Passou em primeiro lugar e se tornou a primeira mulher cirurgiã do Hospital da Clínicas (HC). “Fui guerreira, fui vencendo. A medicina mudou a minha vida.”
Aos noventa anos e ainda ativa na sala de cirurgia, a doutora foi recentemente laureada pela universidade de Stanford como uma das cientistas mais influentes no mundo por seu trabalho revolucionário no tratamento do câncer retal. “O primeiro passo da medicina no combate ao câncer é a prevenção. É claro que em um pais grande como o nosso e com dificuldades econômicas, onde se passa fome, a prevenção não é tão eficaz. Mas a medicina evoluiu muito, não só na prevenção como no tratamento”.
Em um papo com o Trip FM, Angelita ainda falou de alimentação, de quando ficou entubada com Covid-19 por cinquenta dias, do SUS e da infância na Ilha do Marajó. Confira no play ou leia um trecho abaixo.
Trip. Câncer é uma palavra que muitas pessoas não gostam nem mesmo de falar, mas a ciência evoluiu muito. Em que fase estamos no tratamento desta doença?
Angelita. O primeiro passo da medicina no combate ao câncer é a prevenção. No Brasil existem os meses: o do intestino, por exemplo, foi em março. É claro que em um pais grande como o nosso e com dificuldades econômicas, onde se passa fome, a prevenção não é tão eficaz. Mas a medicina evoluiu muito, não só na prevenção, como no tratamento. Progressivamente surgem drogas quimioterápicas mais potentes contra diferentes tipos de câncer. O câncer que era fatal no passado, hoje é curável. A medicina progrediu em várias modalidades de tratamento: medicamentosa, radioterápica e cirúrgica.
O que há de melhor ao se chegar aos noventa anos? Chegar aos 90 anos é acalentador. Mas já tive experiência de quase morte quando contraí a Covid-19 e o que pensei foi: gostaria de viver mais um pouco, a vida é tão gostosa. A vontade de viver ajuda muito na vida. Eu enxergo bem, minha coluna é boa, minhas mãos não tremem. Hoje quando eu entro em uma cirurgia, saio relaxada, porque eu conheço o abdômen. Na minha área tem gente igual, mas melhor é difícil. Além de estudar e trabalhar, eu tenho uma sorte extraordinária, Deus está no meu ombro direito. Comigo tudo dá certo.
Qual é o maior medo ao se entrar em uma sala de cirurgia? O cirurgião precisa de tranquilidade, presença de espírito, segurança e conhecimento. Não há medo: você pode encontrar um sangramento, uma anatomia diferente, uma doença mais avançada, mas nós temos o preparo para isso. Você não opera o abdômen sem antes fazer uma sutura no pronto-socorro. A culpa de qualquer incidente na sala de operação é sempre minha, nunca da equipe.
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Imagem principal: Silvia Machado / Divulgação