A ousadia e a liberdade de Claudia Raia

Aos 53 anos, a atriz lança biografia e abre o jogo sobre sexo, amor, política e envelhecimento: "A mulher tem data de validade e expira quando ela para de ovular, como se não servisse para mais nada"

por Redação em

Jô Soares disse uma vez que de dez em dez anos nasce uma estrela, mas só a cada vinte é que nasce uma mulher como Claudia Raia. O apresentador, que ela diz ter sido seu "primeiro grande amor", estava certo. Aos 53 anos, a atriz acaba de lançar sua biografia, Sempre Raia um Novo Dia, que narra episódios de sua vida – do casamento com Alexandre Frota ao apoio ao ex-presidente Fernando Collor em 1989 – e dos 35 anos de carreira. Claudia já cantou, dançou, produziu espetáculos no teatro, viveu personagens marcantes no cinema e na TV, tanto no drama quanto na comédia, e estampou mais de 600 capas de revista.

Em entrevista à Trip, ela fala da morte do pai, da pressão que sofreu seu relacionamento com Jô Soares – "até hoje as pessoas ficam muito impressionadas que eu tenha namorado com o Jô, como se ele ser um homem gordo fosse a única coisa que ele tem", conta – e da invisibilidade que sofrem as mulheres depois dos 40. "A mulher tem data de validade e expira quando ela para de ovular, como se ela não servisse para mais nada", diz. "Você vai parar de transar? Você vai parar de gozar?". Dá o play!

Claudia Raia com o apresentador Chacrinha e a modelo Monique Evans - Crédito: Arquivo pessoal

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Trip. Você acaba de lançar sua biografia, Sempre Raia um Novo Dia, na qual você conta diversas histórias. Dentre elas, me chamou a atenção a circunstância da morte do seu pai, quando você tinha 4 anos. Conta um pouquinho desse episódio?

Claudia Raia. A minha passagem com o meu pai é muito breve, mas me lembro dele perfeitamente. Ele era um alto executivo de uma multinacional e um funcionário, braço direito dele, acabou fazendo um desfalque na empresa. Ele descobriu e teve que mandar ele embora. Depois desse episódio, a esposa desse funcionário, que era uma banqueteira de mão cheia, deu um pato com laranja para o meu pai, se desculpando pelo ocorrido e se dizendo muito envergonhada. E meu pai, que era um admirador da gastronomia, recebeu aquele prato. Minha mãe conta que o jeito que ele comeu o pato é que foi mais impressionante. Meu pai era um cara muito de boas maneiras, sofisticado, comia asa de frango com garfo e faca. E aí ele se atracou naquele pato, comeu com a mão, devorou. Não ofereceu o pato para ninguém, comeu inteiro. E ele bebia socialmente. Passados uns dois meses, ele começou a beber todos os dias. Em três, quatro meses ele bebia de tudo: whisky, cachaça, tudo o que tivesse. Dali seis meses, ele chegava com garrafa de bebida dentro do terno, foi pego bebendo perfume, se tornou um alcoólatra. Em um ano, ele faleceu de cirrose hepática aos 50 anos de idade. Foi um choque. Minha mãe ficou de um jeito que eu espero nunca mais ver ninguém daquela maneira. Depois de uns três anos a minha mãe foi a uma cartomante e eu fui com ela. Eu tinha seis, sete anos. E a cartomante falou pra minha mãe: "O seu marido foi envenenado espiritualmente. Tinha um trabalho feito no que ele comeu". A mulher não sabia de nada, nunca tinha visto a minha mãe na vida. Ela disse: "Esse trabalho está enterrado numa figueira perto da sua casa. A senhora cave que vai achar o trabalho feito para o seu marido." Minha mãe quase desmaiou. Ela foi, cavou e encontrou uma caixa com o nome do meu pai, com foto do meu pai, com linha vermelha, preta, caveira, cruz, enfim, todas as coisas. É uma história bizarra porque a gente acha que isso não existe, né? Mas na verdade, mais do que encontrar um trabalho, é impressionante o que o pensamento pode fazer. Uma energia negativa pode destruir uma pessoa. 

Claudia Raia - Crédito: Tato Belline

A sua precocidade impressiona na sua trajetória. Aos 13 anos você foi para Nova York com uma bolsa de estudos de balé. E lá acabou sofrendo dois episódios de assédio sexual, um ataque na rua, e, depois, do dono da casa onde você estava hospedada. São situações difíceis para uma mulher de qualquer idade, mas principalmente para uma adolescente. Por outro lado, essa precocidade também fez com que você aos 18, 19 anos já tivesse papeis importantes em novelas. Você acha que foi uma boa ter feito tudo isso tão jovem? Se você voltasse no tempo, faria diferente? Eu não faria diferente. Acho que não teve nenhum nenhum descuido da minha mãe, ao contrário, ela foi completamente coagida por mim. Eu disse para ela: "Se você não me deixar cumprir essa bolsa de estudos dificílima que eu consegui, que foram apenas duas brasileiras admitidas e mais duas pessoas de outros países da América Latina, eu fujo. Eu vou de qualquer jeito, porque eu quero isso!" E a minha mãe sempre foi uma mulher vanguardista, eu venho de uma família de quatro mulheres feministas. Ela era muito moderna. No [musical] Raia 30 ela deu uma entrevista na qual perguntaram: "Como é que a senhora conseguiu conter a Claudia?". Ela disse: "A Claudia sempre foi uma louca, um passarinho enlouquecido dentro da gaiola. Se eu não abrisse a portinha ela estraçalhava a gaiola". Então ela teve a sensibilidade de sacar onde essa filha queria chegar. Eu não mudaria absolutamente nada porque se eu não tivesse vivido tudo isso não teria chegado onde eu cheguei e não teria feito a história que eu fiz tão precocemente. Eu só consigo escrever um livro de memórias aos 53 anos porque eu tenho tudo isso para contar. Foi chato? Foi. Algumas coisas foram muito esquisitas? Foram. Mas muitas coisas foram muito maravilhosas. Eu também tive muitas mãos que foram estendidas para mim. Nessa tentativa de assédio dentro da casa da família americana que me hospedava eu tive uma mão de uma pessoa no meio do Harlem que me acolheu e me levou para um apartamento. Eu estava com a mala e mais nada. Não tinha um celular. Eu tinha que ir para uma telefônica no Harlem nos anos 70. Como é que eu ia sair dali? Eu não tinha dinheiro. E aí eu tive Deus agindo e uma professora de balé moderno que me deu aula no Ballet Stagium passou naquele momento e me deu a mão. Então assim, muitas coisas maravilhosas. E eu pude estudar dança no American Ballet Theater com 13 anos de idade. Fui uma menina e voltei uma mulher. A minha filha Sophia está indo estudar em Nova York na NYU, vai fazer faculdade lá. Se ela quisesse ter ido aos 13 anos eu teria deixado.

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Claudia Raia - Crédito: Tato Belline

Você conta sobre o seu término com o Jô Soares e o que mais me chamou a atenção foi ele ter terminado com você por não saber lidar com o fato de você ser muito mais nova. Você fala que foi seu primeiro grande amor e que tinha uma pressão social gigantesca por ele ser gordo, mais velho, e você gostosa, alta, jovem. Se fala pouco de preconceito quando o homem é o mais velho da relação. Como foi viver isso? Até hoje as pessoas ficam muito impressionadas que eu tenha namorado com o Jô, como se ele ser um homem gordo fosse a única coisa que ele tem. E ele é uma das mentes mais brilhantes do país, um homem espetacular, de uma inteligência única. Com um carisma, com um humor, com uma facilidade de se relacionar. É uma delícia de pessoa. E eu me encantei com esse ser humano. Me surpreendi de estar apaixonada por esse homem aos 17 anos de idade? Sim. Me amedrontou na hora que eu olhei e falei: "É completamente diferente dos namorados que eu tive ou das pessoas pelas quais eu me apaixonei". Mas o fato é que eu me apaixonei por ele e me orgulho muito disso porque isso significa que é muito mais do que um corpo, né? É muito mais do que um padrão de beleza. Agora se fala de corpo livre, de preconceito, de gordofobia. Não se falava disso na época. Era tabu mesmo, real. E a mulher ser mais nova não era tabu porque isso era muito comum, como é até hoje. O que o Jô enxergou, e eu acho que com uma maturidade excepcional, foi o quanto que ele iria sofrer caso eu olhasse para o lado e enxergasse um Alexandre Frota e quisesse me casar com ele, que foi exatamente o que aconteceu. Claro, eu não sei se eu teria olhos para o Alexandre Frota se tivesse ficado com o Jô , talvez não. Mas um pouco mais pra frente, talvez as diferenças de idade, principalmente, começassem a bater. Porque eu era muito jovem, muito espevitada, muito sociável, muito alegre. Não que ele não fosse, mas ele era um cara de 53 anos e eu tinha 17. É diferente, né? Eu era mais nova que o filho dele. Então esse peso caiu sobre as costas dele. Ele disse: "Você vai ser uma das maiores estrelas desse país. Eu não sei se eu dou conta de ter você com esse sucesso todo". Quando eu comecei a fazer a novela Roque Santeiro eu ainda estava namorando ele e nada mudou. Só mudou quando ele terminou comigo. Eu sofri feito uma desesperada porque ele efetivamente era o homem da minha vida. E foi sem dúvida nenhuma o meu primeiro grande amor. Digo para você hoje que ele tomou a decisão errada? Acho que não, acho que ele tomou a decisão certa.

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Claudia Raia - Crédito: Tato Belline

É muito conhecido nos consultórios de psicanálise o medo que as mulheres bonitas provocam nos homens. Eu já entrevistei várias mulheres e elas falam abertamente que os caras não chegam perto, não abordam, ficam intimidados mesmo. Você já foi homenageada com muitas broxadas, quer dizer, muitos homens chegaram na hora do sexo com você e amarelaram? Fui homenageada com muitas broxadas, mas eu sempre tive muito carinho com os homens. Porque o nosso brinquedinho é de abrir e o de vocês é de armar. É muito puxado, não é fácil um brinquedinho de armar. Então eu tenho um respeito pelo órgão masculino, é bravo essa ereção. Nós, mulheres, pelo menos nesse aspecto, temos uma vida muito mais calma, é muito menos demanda. Em todo o resto vocês estão maravilhosos e a gente está lá na ralação: é menstruação, menopausa, parto, amamentação, tudo muito puxado. Mas a ereção tem a ver fundamentalmente com o estado emocional, a cabeça do cara, o dia que ele passou, e não necessariamente com o tesão que ele tem na mulher e o que ele está sentindo naquele momento. Eu já presenciei o cara morrendo de tesão e não conseguir uma ereção. Isso tem que ser entendido pela mulher mesmo. Como eu acho também, sexualmente falando, que ela tem que dar o caminho das pedras para o homem, porque o órgão masculino é meio tudo bem parecido. A mulher não, o órgão feminino é interno e é único. Cada mulher sente de um jeito único. Não é parecido, é único. Então se você, mulher, não se investigou, não sabe do jeito que você gosta, você não sabe pedir. Você não sabe dizer para o seu homem como é que você gosta, e aí fica muito difícil o homem acertar. Ele vai como? Com o seu comando. O comando delícia, o comando fofo, não o comando tipo guarda de trânsito. Mas é claro que essa é a relação, esse é o conhecimento de um para o outro. Fundamentalmente da mulher para o homem, porque o homem só vai chegar no lugar certo se a gente encaminhá-lo. Você concorda com isso? 

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Sem dúvida. Falando sobre sexualidade, eu estava conversando outro dia com duas mulheres de 50 e poucos anos e elas falaram sobre as descobertas que estavam tendo de medicamentos, suplementação hormonal e coisas do tipo para lidar com a sexualidade durante e após a menopausa, e parecia que elas tinham descoberto um outro planeta que elas achavam que não existia. Como tem sido essa experiência para você, da sexualidade conforme o tempo vai passando? Eu fui sentindo na pele que a gente ainda vive num país extremamente machista, estruturalmente machista, e que se nega ou tem dificuldade de falar da mulher ageless, da mulher sem idade. A mulher que passou dos 40 anos não existe. Ela tem data de validade e expira quando para de ovular, como se não servisse para mais nada. E essa mulher está passando por uma bomba hormonal, é a mesma bomba de quando ela menstrua. Só que quando ela menstrua tem um monte de gente falando como é que vai ser, e quando ela vai entrar na menopausa ninguém fala porra nenhuma. Nem os médicos falam. Tenho ouvido mulheres que ficam absolutamente sem lubrificação, secas, e que não conseguem transar mais; mulheres que ficam com incontinência urinária; mulheres que ficam com a pele completamente ressecada, craquelada e que se sentem feias, horrorosas e os maridos não conseguem transar uma, duas vezes, e não querem nem saber o porquê, largam essa e pegam uma novinha. Essa mulher que é achincalhada o tempo todo: "não pode usar mais roupa curta", "você não tem mais idade para usar cabelo comprido", "não tem mais idade para ter um novo namorado", "não tem mais idade para abrir um novo negócio ou para mudar de profissão". Ela é jogada num buraco negro do qual só vai retornar quando chegar aos 80 e virar a vovó fofa. É uma loucura, quase que um medo do poder dessa mulher porque, fundamentalmente, ela não precisa mais de homem. Na maioria das vezes essa mulher está estabelecida, com os filhos criados, ela tem o poder de compra, tem o poder de decisão – porque quem manda na família é a mulher, vamos trabalhar com a verdade. É como se o homem não quisesse entender e aceitar o poder dessa mulher, então ele achincalha ela. Ele derruba essa mulher para vir com uma novinha que é ainda inexperiente, é ainda com pouca opinião, insegura, que a gente é mesmo quando é mais jovem. Aquilo ali ele domina, a outra mulher ele não domina. E aí eu começo a pensar: essa mulher chega no ginecologista e fala: "Estou fazendo xixi na calça, tô seca, etc". E ouve que "é a menopausa, é assim mesmo". Quer dizer que você está fadada ao fracasso, a passar a sua vida sofrendo de calores, de se sentir mal, de se sentir tonta, de estar seca, se sentindo a pior mulher do mundo. É assim a menopausa. Bom, então melhor a morte, né? Então eu resolvi falar sobre isso. Levantar essa bandeira. Acredito no ageless. Acredito que a mulher é linda em qualquer idade, com qualquer corpo, com o cabelo que você quer ter, com a roupa que você quer vestir. É esse o discurso e o sexo está dentro disso. Você vai parar de transar? Você vai parar de gozar? Aí você parou de viver, né? O homem goza até sei lá quando. Por que tem o Viagra para o homem, e não tem um apoio para mulher? Tem que ter.

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Você apoiou a candidatura à presidência do Collor em 89. No seu livro você conta que se sentiu enganada por ele, se arrependeu, e que esse apoio te custou um preço alto. Nós estamos vivendo de novo num momento muito difícil no país. Queria que você dissesse, como cidadã e artista, quais perspectivas você vê para a gente nesses próximos anos. A gente está indo realmente para uma vala sem fundo? Eu primeiro queria deixar claro que não sou petista. Eu jamais votei no PT, jamais. É só para deixar claro porque todo mundo no Brasil inteiro acha que os artistas todos são do PT. Eu não sou. Aliás, eu não tenho partido. Se eu fosse me colocar, eu diria que eu sou centro-esquerda? Talvez. Mas prefiro nem dizer porque eu olho para o meu país com carinho. E olho para o meu povo com tristeza, na verdade, porque é um povo maravilhoso, um povo guerreiro. Mas é um povo que não aprendeu a votar ainda, nenhum de nós sabe votar porque ninguém ensinou. Nós não temos uma educação política, principalmente as pessoas que não têm o acesso que nós temos. Em relação à cultura, eu não sei nem o que te dizer. A cultura está morta, esfaqueada. Enterrada, não, porque a gente vai desenterrar isso e conseguir se levantar, vai ficar de pé em algum momento. Até porque nos momentos de crise a nossa criatividade fica mais aguçada e a arte é um ato político. Vide essa pandemia, que todo mundo falou tão mal da arte, este governo falou tão mal, e foi a arte que nos salvou. Se nós não tivéssemos os filmes, as séries, os livros, as lives, a música, nós estaríamos todos perdidos no mundo inteiro. Eu sou uma pessoa positiva, acho que quem vai tirar a gente do buraco é a consciência do povo. Essa pandemia veio para abrir os olhos da gente não só para o governo, ou para os líderes mundiais, mas para uma coisa espiritual muito maior: a humanidade vem destruindo o pulmão do universo e veio então um vírus que destrói o pulmão da humanidade. Isso é muito significativo. A gente tem que prestar atenção nisso, está nas nossas mãos, não está nas mãos de fulano ou sicrano.

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Imagem principal: Tato Belline

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