Você conhece o Grajaú?

Fui ajudar e acabei aprendendo com uma comunidade que vive na escuridão – mas de olhos e corações bem abertos

por Redação em

 
Outro dia fui visitada em meu gabinete por um grupo de pessoas que trazia reivindicações gravíssimas do Grajaú, na Capela do Socorro, região sul de São Paulo. Mobilizei o subprefeito e o secretário municipal para uma visita no local. Um grupo de lideranças nos esperava na sala de um orfanato construído e mantido por alemães no bairro. Aquelas pessoas moram numa área invadida, sob processo de reintegração de posse. O grande impasse é que a prefeitura não pode fazer benfeitorias numa área que não seja pública.

Fiquei com uma sensação de ausência, um esquecimento de mim mesma como se ainda não tivesse chegado lá, onde o mundo estragou. Diante daquela realidade desvendada no foco de olhares que misturavam tristeza, esperança e desconfiança, eu me calei.

Fui salva pelo secretário Andrea Matarazzo, que, percebendo minha angústia, começou a falar até que eu conseguisse verbalizar o intuito da visita. Depois fomos todos caminhar pelas ruas da região.

Toda energia que conseguem utilizar é gato. Os postes têm um emaranhado de fios que dá medo. Os moradores uniram-se e compraram uma escada, que fica guardada na casa de um deles, para fazer intervenções freqüentes na rede. É comum ali morrer gente de choque elétrico. E os fios ficam soltos no chão no mesmo terreno onde as crianças brincam.

Aquela demanda, quase vital, me fez refletir sobre o meu último domingo. Havia recebido um comunicado da Eletropaulo informando que meu bairro ficaria sem energia do meio-dia às quatro da tarde. Por conta da minha tetraplegia, em quase tudo que faço em minha casa utilizo a eletricidade, pois preciso de corrente elétrica para me mexer: elevador, hidromassagem, eletroestimulação, bicicleta, cama elétrica, aquecedor e cobertor elétrico para combater o meu frio, sem contar computador, boiler, som, TV, telefone... Fiquei de mau humor, assistindo a um DVD e, apreensiva, olhava os minutos se aproximarem das 12 horas. Fiz todo um planejamento e a luz não acabou.

Gatos e ratos

Fui recebida com muito carinho por um povo que fica no escuro quase todos os dias. Seus eletrodomésticos queimam inexoravelmente. Um pedaço de terra que, se bem cuidado, viraria um charmoso recanto. Mas o córrego malcheiroso distribui ratos pelas moradas e o gato da água é um caninho a 30 centímetros de altura que acompanha toda a extensão do esgoto. Essa é a água que eles bebem.

Uma mulher chegou mostrando onde ficava seu barraco, dizendo que, apesar de feio por fora, é limpo e bonito por dentro. Porém, não tem controle sobre os ratos. Sua filha foi mordida, e no hospital ainda não sabem o que ela tem.

Eles convivem com a vulnerabilidade, pois a qualquer hora podem ter que sair dali, e, mesmo assim, são imbuídos de decência, simplicidade e despretensão naquilo que pedem. Sobrou até espaço para dar: fui presenteada com uma orquídea!

Comovida com a pobreza e na expectativa de poder ajudar, senti que em meio a todo aquele martírio existem nítidos traços de felicidade.
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