Virando a própria mesa
Depois de dois meses, descobri o prazer de organizar a rotina de uma casa
Depois de dois meses no papel de dona de casa obsessiva, descobri o prazer de organizar a rotina de uma casa
Faz dez anos que eu saí de casa com uma lista de supermercado nas mãos e a vaguíssima ideia de como realizar aquelas compras. Como escolher aipim? Como saber se o abacaxi está maduro? Qual o Veja certo? Por que a água sanitária é o glúten dos produtos de limpeza? Pra que serve um saponáceo cremoso? Perguntas de um mundo inescrutável. Pisar no mercado para fazer compras para minha casa, pela primeira vez, foi como desembarcar em um país novo.
Um país regido pelo pragmatismo, que poderia ser olhado com desdém, como algo que se faz mecanicamente, de olho no relógio para sair dali o mais rápido possível, mas que me encantou por ser tão misterioso. Eu vi beleza em aprender a diferença entre as diversas ofertas de banana nas gôndolas ou mesmo em destrinchar as etapas do processo de lavagem de uma roupa e seus produtos. Me dava uma sensação de dignidade saber que cada uma das frutas na gamela havia sido escolhida pelos meus sentidos e desejada por mim.
Em pouco tempo aquele território desconhecido se tornou a minha casa. E não demorou muito pra vida ficar corrida o suficiente a ponto de feiras ou mercados serem expelidos da rotina e passarem a ser resolvidos na loja de conveniência do posto de gasolina ou pela Edna, minha superdoméstica faz-tudo.
Embora eu tenha tido a curiosidade para desbravar o universo do consumo doméstico, nunca cheguei propriamente a me tornar uma dona de casa. O proprietário de um saber é aquele que o destrinchou com rigor e método. E, como a Edna vinha da casa da minha mãe, o método implementado na minha casa foi uma consequência acidental, não uma escolha.
Até eu ter filho. Um mês após o parto da Iolanda, nós nos mudamos para uma casa de 150 metros quadrados com um pequeno jardim. Não éramos mais somente eu e Francisco, meu marido, como nos últimos sete anos, mas eu, ele, Val (a babá), Jana (a folguista), Edna (a cozinheira, por duas vezes na semana) e Rosélia (a faxineira, diariamente). De repente, eu tinha uma equipe, uma rotina complexa, cara, que me exigia diariamente respostas que eu não tinha para dar.
Passei a me sentir soterrada pelo cotidiano. Faz a cama, bate louça, paga, paga, paga, pede farmácia, ficou faltando azeite, a lavanderia não entregou, tem uma infiltração no quarto da menina, o ar-condicionado deu problema, a mangueira do meu terreno quebrou o telhado do vizinho, tá cheio de inseto morto em cima do sofá e de goteira na sala. Ou eu virava o jogo, ou mudava de país.
Obsessiva
Foi então que tive um encontro-portal, daqueles que abrem uma nova dimensão, com a restauranteur Zazá, uma dona de casa platinum. E ela me passou um documento com dez páginas, contendo uma sistematização do serviço doméstico. Li o documento com gratidão e fascínio por aquela mente profundamente pragmática que me ajudaria a assumir uma posição de controle na minha própria vida. Adaptei a rotina dela à minha e comuniquei o novo plano à equipe boquiaberta. E, quando eu comecei a me sentir no topo deste jogo, aprendi a gostar. Foi assim que eu me tornei uma dona de casa obsessiva.
Durante dois meses virei uma megera. Eu precisava esticar a corda, chegar no limite, para poder encontrar algum equilíbrio. E hoje, depois de quatro meses surtando se alguém tivesse jogado uma garrafa PET no lixo orgânico, criei um sistema de administração sofisticado e próprio. Recuperei aquela sensação de dignidade do passado, aprendi que organizar é difícil a princípio, mas, depois de dominada e estabelecida a rotina, dá muito menos trabalho, é mais barato e, o melhor, dá prazer.
*Antonia Pellegrino, 32 anos, é roteirista e escritora. É dela o roteiro da série Oscar Freire 279. Ela ganhou o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro pelo roteiro do filme Bruna Surfistinha. Seu e-mail: a.pellegrino@terra.com.br |