Versão feminina
Baseada em um texto de Luis Fernando Veríssimo, escritora Tati Bernardi faz sua crônica
Vivo cercada por lembranças, por paixões que eu poderia, com alguma sabedoria, não ter vivido. Mas que se tornaram grandiosas e dilacerantes única e exclusivamente porque o tédio em não ter um foco amoroso me soa ainda mais tolo do que inventar amor.
Ah, se eu tivesse dito não para aquele mineiro safado ou para aquele playboyzinho de Higienópolis. Não para aquele falso sensível comedor de modeletes drogadas. Não para aquele carioca sempre me pedindo R$ 4 pra inteirar a grana do cigarro. Não para o rapaz casado, que tinha dó da esposa. Não para o brocha que só ficava nervoso porque “era a nossa primeira vez”… primeira vez que durou dois anos.
Agora mesmo neste café metido a francês de São Paulo um deles se sentou na minha frente e me provocou:
– Você adorava transar comigo.
– É, eu adorava. Mas isso foi até eu transar com outro. Você não tinha a menor noção do que é um sexo oral.
Ao lado dele, surge outro rapaz inesquecível de meu passado. Demoro um tempo pra recordar seu nome, pois assim que ele deixou de ser inesquecível eu o esqueci.
– Você adorava conversar comigo.
– Eu adorava. Mas isso foi até eu conversar com outro. Nunca foi troca de almas o que tivemos, apenas de fluidos. E fluidos sem alma é pior do que ir sozinho e cedo pra cama, numa sexta-feira quente.
Só então reparei que todos eles estavam no café. Todos tão especiais e tão descartáveis. Eu era o centro daquele universo tão errado chamado “meus amores”. Quer dizer, eu achava que era, porque na verdade eles desencanaram de minha existência e se tornaram, todos, melhores amigos. Riam, brindavam e se amavam. Todos eram o mesmo que não é nenhum. Chamei o garçom pra pedir a conta e fugir dali o mais rápido possível. Mas o garçom era gatinho. Vai começar tudo de novo.
***
Veja aqui a crônica original:
Versões
Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido. Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número (unzinho e eu ganhava a sena acumulada), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito sim, dito não, ido para Londrina, casado com a Doralice, feito aquele teste…
Agora mesmo neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz — aliás, o nome do bar é Imaginário — sentou um cara do meu lado
direito e se apresentou:
— Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo.
E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.
— Por quê? Sua vida não foi melhor do que a minha?
— Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção. Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia...
— Eu sei, eu sei… — disse alguém sentado ao lado dele.
Olhamos para o intrometido… Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:
— Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.
— Como é que você sabe?
— Eu sou você, se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como me mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado
o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um herói, me atirei… Levei um chute na cabeça. Não
pude ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INSS e só faço isto: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante…
— Ele chutaria para fora.
Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado dele, que em seguida se apresentou.
— Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença. Não seria gol. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e agora com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula. Oprimeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio…
— E o que aconteceu? — perguntamos os três em uníssono.
— Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?
— Você…
— Morri com 28 anos.
Bem que tínhamos notado sua palidez.
— Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo…
— E ter levado o chute na cabeça…
— Foi melhor — continuou — ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado…
— Você deve estar brincando.
Disse alguém sentado a minha esquerda. Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.
— Quem é você?
— Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público.
Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra. As consequências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração. Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente.
Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor aspecto, ali,era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente. Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas.
— Quem é você? — perguntei.
— Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.
— E...?
Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo.
***
Vai lá: Em algum lugar do paraíso, de Luis Fernando Veríssimo, ed. Objetiva, R$ 29,50