Vanessa Barbara
Em seu novo romance, 'Noites de Alface', escritora fala de solidão e perda sem abandonar o humor
“Ada tinha os cabelos curtos, era magra e gostava de couve-flor. Otto tinha os cabelos curtos, era magro e gostava de couve-flor”. Assim é descrita a afinidade do casal protagonista de Noites de Alface, novo livro da escritora e jornalista Vanessa Barbara. Otto e Ada: um casal que se desfaz quando Ada morre e Otto é deixado sozinho, numa casa amarela cheia de afazeres domésticos deixados pela metade.
Depois de um livro-reportagem (O Livro Amarelo do Terminal), um romance em co-autoria (O Verão do Chibo, com Emilio Fraia), um infantil (Endrigo, O Escavador de Umbigos) e uma graphic-novel (A Máquina de Goldberg, com Fido Nesti), Vanessa lança o seu primeiro romance em parceria consigo mesma, como ela diz.
Noites de Alface estreou antes de virar romance. Suas páginas iniciais foram publicadas na coletânea dos melhores jovens autores brasileiros da revista Granta, que saiu pela editora Alfaguarra no ano passado, criando expectativa entre os leitores sobre o que viria a seguir. “Todo mundo esperava um romance mais introspectivo e triste, a julgar pelo capítulo inicial”, suspeita a autora. Mas, a julgar pela forte presença do humor que ajuda a diluir o peso do drama central do livro, sairão melhor contemplados aqueles que esperarem de Noites de Alface a ironia afiada e o destaque às sutilezas cotidianas, típicos dos textos da autora.
O epicentro da história é o drama da perda, a partir do qual se desdobram outros temas, como a percepção do outro, a individualidade no contexto da vida comum e a imprevisibilidade da morte, que chega justamente quando ninguém está preparado – na casa de Otto, as roupas ainda pingavam no varal.
A personalidade de Otto, o personagem principal do livro, vai se mostrando conforme ele interage com uma numerosa vizinhança que se compadece dia a dia pela morte da esposa. Os personagens, quase todos amalucados ou dotados de alguma peculiaridade – como um jovem obcecado por bulas de remédio ou uma senhora adepta do sincretismo religioso – ajudam Otto a lidar com a perda e reencontrar sua individualidade confundida na vida a dois.
Vanessa constrói com habilidade as contradições dos personagens para demonstrar a natureza volúvel do ser humano. Ao mesmo tempo em que se mostra ranzinza e indisposto a lidar com os outros, o personagem Otto é extremamente doce, o que fica visível em trechos como este: “Ada amava o quintal. Quando estava com ela, Otto amava também; sozinho, detestava igualmente as tulipas e os vizinhos.”
No auge do lançamento de Noites de Alface, a Tpm conversou com Vanessa sobre as motivações de sua literatura, a influência de pessoas e lugares reais na composição do romance e, claro, sobre a dificuldade de falar sério.
“Acho que fazer ficção é isso: usar o mundo ao redor para se inspirar e construir coisas a partir dele”
A primeira surpresa que Noites de Alface causa no leitor é a reviravolta. No começo, parece que a história vai seguir por esse lado saudosista, do personagem que não consegue se desapegar do conforto do passado. Mas, de repente, a história vira a esquina e se torna quase um suspense. Essa guinada foi premeditada ou aconteceu no decorrer da escrita?
Vanessa: Ela surgiu naturalmente enquanto eu escrevia – de início pensei apenas em descrever a vida dos vizinhos a partir da percepção de um personagem que não saía de casa, que só captava alguns sons e pistas esparsas, mas aos poucos vi que seria um ótimo terreno para uma história de suspense. Minha casa no Mandaqui é um pouco como a casa amarela – é possível acompanhar a vida dos vizinhos através dos sons, cheiros e de algumas dicas esparsas (embora eu de fato conheça bem alguns deles), e o legal é que às vezes nos deparamos com fragmentos misteriosos de conversas ao telefone, festas de aniversário fora de época ou brigas que não conseguimos compreender direito, e dá para criar facilmente hipóteses muito loucas a partir delas. Imagino que os meus vizinhos também pratiquem esse exercício. (Pensando bem, acho que as paredes no Mandaqui devem ser finas demais.)
O livro todo é marcado por uma forte alternância de tons. Quando o leitor acostuma-se à melancolia, a história dá um salto e fica leve, divertida. Entre uma frase como “as coisas da casa prendiam a respiração e esperavam” e “se você ri com a mesma cara com que se afoga, mude seus hábitos” há uma diferença enorme, como se o próprio narrador tivesse mudado. Isso foi intencional? Existe uma alternância de tons entre o atual estado de espírito de Otto, marcado pela tristeza profunda, pela introspecção e pelo luto, e um jeito mais leve de ver a vida, que era a marca registrada de Ada, e que, após a sua morte, continua a se traduzir na vizinhança. É como se ela continuasse viva não só pelas memórias que Otto tem dela, mas também pelos vizinhos.
Seus textos literários são, em geral, indiferentes a tudo que se pretenda importante demais, e se interessam por explorar as coisas que tangenciam a percepção das pessoas. Isso é muito perceptível em seu primeiro livro, O Livro Amarelo do Terminal. Como você transpôs essa intenção para o romance? Todos os personagens dão extrema importância a coisas tolas, como a obsessão de Nico pela natação – apesar de ele ser o pior nadador do mundo. No decorrer do livro, Otto começa a perceber que uma das coisas que lhe dão prazer na vida são os documentários sobre vida animal, pois a um só tempo o aproximam de Ada e também o libertam dela. Acho que o romance inteiro é marcado por isso: uma vizinhança minúscula cheia de pessoas com interesses prosaicos – não há nenhum herói, nenhum personagem trágico com grandes vícios de personalidade ou grandes ambições, só pessoas comuns com características interessantes.
Cortázar dizia que enquanto contos ou textos mais curtos prendem o leitor por pontos, um romance deve ganhá-lo por nocaute. Você concorda? Por estar mais habituada a escrever crônicas, em algum momento se sentiu obrigada a construir esse instante de arrebatamento? Sim, Noites de Alface é um romance curtinho que tenta unir um pouco de cada coisa – cada capítulo sobre os personagens pode ser lido como um conto, mas a construção do romance se faz por meio do acúmulo de pequenas coisas. Existe um momento de reviravolta, mas isso não é o que vai dar a estrutura final ao texto.
No livro, dá pra perceber alguns traços bairristas, como a comoção que se dá entre os vizinhos quando Ada morre, ou detalhes como a passagem do amolador de tesourinhas. Os personagens são muito familiares, como se todo mundo pudesse ter vizinhos como eles. Quanto dessa história foi inspirado em coisas que você viveu e em pessoas que você conhece/conheceu? Muito. O carteiro Aníbal foi inspirado no Victor Gigante, meu carteiro mandaquiense que passava cantando, todo feliz da vida, e socializava com todo mundo. É claro que a essa base real fui juntando outras coisas, misturando aspectos absolutamente inventados a outros inspirados em pessoas que conheci, e fazendo essas pessoas reagirem a coisas que inventei. Acho que fazer ficção é isso: usar o mundo ao redor para se inspirar e construir coisas a partir dele.
“O humor é inseparável de todo o resto, uma parte indissociável da minha forma de ver o mundo”
De certa forma, você já deu voz a um terminal rodoviário (em O Livro Amarelo), a uma criança (em Endrigo) e agora a um senhor idoso. Algumas falas de Otto, muito cheias de ternura, surpreendem por serem colocadas na boca de um personagem tão ranzinza. O que foi mais difícil na busca dessa “voz” Eu mesma tenho algumas características do Otto e já passei por experiências de mudar para melhor em relacionamentos, de ficar mais sociável e aberta ao me envolver com uma pessoa assim. Fiquei imaginando como seria para um personagem desses perder definitivamente a companheira que lhe conectava ao mundo – ele oscilaria entre a ternura que aprendeu com ela e a raiva de tê-la perdido. Minha intenção principal em Noites de Alface era falar de perda, de como um personagem com essas características reagiria a uma perda devastadora. No caso, a perda é dupla: não se refere apenas à morte de Ada, mas ao segredo que ela escondeu dele.
Longe de querer fazer spoiler, quando Noites de Alface acaba, bate um certo senso fraternal em relação ao Otto: será que ele vai ficar bem? Isso aconteceu com você, tanto neste quanto em outros textos, de desenvolver apego a algum personagem? Sim. No decorrer do romance, passei a me apegar muito ao Otto por motivos inclusive pessoais – também passei por uma experiência de perda e me vi, de certa forma, na pele dele. Daí a questão do segredo passa a ter um significado (quem sabe?) libertador para o personagem. Eu me apeguei muito ao gordinho de A Máquina de Goldberg também, e ao menorzinho de O Verão do Chibo.
Como escritora e jornalista, você é obrigada a lidar de formas muito diferentes com a escrita. Colaboracões semanais, crônicas, artigos para jornais estrangeiros, participação em festivais literários (e consequente sujeição a todo e qualquer tipo de louco de palestra) e, por fim, o momento solitário da escrita de um romance. Qual dessas funções é mais atribulada pra você? Escrever é a parte boa – o mais sofrido é ter que participar de eventos e interagir socialmente, o que procuro fazer o mínimo possível. Por isso mesmo desisti de me dedicar à reportagem. Prefiro uma observação mais tranquila como a dos cronistas, um envolvimento com o mundo muito mais tranquilo – mas sem ser ranzinza como o Otto.
Quem acompanha os seus textos sabe que raramente se pode ler três linhas suas sem passar por um momento de ironia ou de humor aleatório. Quando te cobram um texto sério, qual é sua maior dificuldade? E o que você considera, afinal, um texto sério? Nunca me cobraram um texto sério... Acho que isso não existe: pra mim, o humor é inseparável de todo o resto, é uma parte indissociável da minha forma de ver o mundo, que passa necessariamente pela leveza, pela ironia, pela despretensão.
Por último, você concorda quando dizem que o que se escreve é sempre reflexo do que se lê? E o que você está lendo no momento? Acho que o que se escreve é reflexo de tudo: do que você está lendo, fazendo, assistindo na televisão, dos seus amigos, das suas experiências recentes, viagens, tudo. Estou lendo um romance que se passa em Xangai chamado When We Were Orphans, não estou gostando muito, mas se passa em Xangai e acabo de voltar de lá.
Vai lá: Noites de Alface, Editora Alfaguarra, R$ 34,90.
(*) Renata Penzani é jornalista e escreve no www.furtacores.tumblr.com