Vaidade visceral

Comemos de acordo com nosso estado emocional

por Mara Gabrilli em

Comemos de acordo com nosso estado emocional – uns emagrecem na dor, outros engordam na felicidade. Tudo o que como contribui para me manter em funcionamento

Quando eu era criança, até os 14 anos, tinha muita dificuldade de comer. Não de comer aquilo que me dava fome, mas o quanto minha mãe queria que eu comesse. Já era uma pessoa com hábitos alimentares modernos, pois tinha fome a cada 3 horas e comia de tudo e pouco. Era esse pouco que incomodava minha mãe. Era uma criança magra, mas de forma alguma esquálida. Faziam pratos para mim muito maiores do que eu aguentava e minha família inteira enlouquecia com o pouco que eu comia.

Não era uma criança que ficava doente fácil e nunca me faltou energia. Mesmo com esse perfil, o pediatra sugeriu a minha mãe que só me tirasse da mesa quando eu devorasse o prato todo. Conclusão: passei três dias à mesa só saindo para tomar banho e para dormir. Uma vez me largaram sozinha na mesa em um restaurante de hotel e, como era final de horário de almoço, fui a única cliente que sobrou. Era bem pequena, lembro-me de não alcançar os pés no chão. Os garçons discretamente me faziam companhia. Começou aí uma grande empatia entre mim e essa classe trabalhadora comprometida com atendimento e refeição.

Uma coisa boa eu lucrei de tudo isso. De tanto me obrigarem a comer alimentos substanciosos, como arroz, feijão, bife e goiabada, passei a cobiçar o que era proibido pra mim. Alface! O perfume do vinagre ficou implacável na minha memória. Hoje, tirando alcachofras, alface é meu prato predileto. Comer tem uma relação muito intensa com o nosso lado afetivo. Comemos o mundo de acordo com o nosso estado emocional – uns emagrecem na dor, outros engordam na felicidade. Comer é ainda o melhor pretexto para encontrar, conversar e literalmente comemorar.

Uma nova dieta

Na época em que quebrei o pescoço e fiquei internada, minha alimentação era parenteral. Um frasco rosa ficava pingando numa sonda que entrava no meu nariz. Era isso que eu comia. Meu paladar se renovou e eu recomecei minha vida alimentar do zero. Lentamente fui adquirindo uma nova dieta e hoje, com prazer, tudo o que como tem que contribuir para construir e manter a massa muscular, tonificar a pele, garantir um bom funcionamento do intestino, dos rins e da bexiga.

O cheiro de tudo que sai de mim é importante para que eu entenda se “os de dentro” estão funcionando em harmonia. Portanto, é essencial que eu saiba o que estou comendo. Missão árdua para quem vive na rua, então tenho sempre os meu lanchinhos. Mas o que me alimenta extrapola a comida. Preciso de sol, de água quente, ver o horizonte, de pessoas que amo e de muito movimento no corpo. Mesmo enfrentando situações bizarras durante refeições na infância, eu adquiri algo imprescindível para qualificar minha atual existência: uma privilegiada vaidade visceral.

E você? Tem fome de quê?

*Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Pró­ximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br

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