Utopia delirante
Milly Lacombe foi arrebatada por um post de Beatriz Preciado
Quando a gente lê um texto e vai imediatamente tentar saber quem escreveu é porque o texto foi, de alguma forma, arrebatador.
Aconteceu comigo quando tive acesso a um post de Beatriz Preciado. Digo post porque não era bem um texto, era mais um manifesto e me parece ter sido colocado no Facebook. Como não tenho Facebook, ele chegou a mim por outros meios. Nem sei agora onde li, mas o fato é que, ao terminar, estava com o coração acelerado, que é o que acontece quando somos submetidos a uma forte emoção.
No caso do texto de Preciado, a emoção vinha da reflexão, da originalidade, da ousadia. Não era uma história bem contada, com final triste ou feliz, era apenas um panfleto. E, ainda assim, extremamente sensível.
Beatriz Preciado é uma filósofa espanhola de 44 anos. O texto a que me refiro estava sendo compartilhado pelo Twitter e tinha uma pegada bastante política. Imediatamente fui atrás de outras coisas que ela havia escrito e percebi que aquele post era apenas um aperitivo.
Nem sei se chamá-la de mulher é tecnicamente correto porque Preciado não parece acreditar muito em gêneros, ou nessa divisão entre sexos e sexualidades. Antes de mais nada ela diz estar em busca de inventar verdades, negando-se a tentar ir atrás de verdades já estabelecidas e assimiladas. “Todas as práticas de filosofia são práticas de fabricação da verdade”, ela escreve. “Há muitas máquinas de produção da verdade, a TV é uma delas, e o importante é que não sejam capturadas pela elite sexual, pelo neo-liberalismo”.
A partir daí ela reforça a ideia de que a verdade precisa ser inventada. Explica que na escola aprendemos sobre as diferenças sexuais, raciais e de classe e que, ao fazer isso, a escola acaba se transformando em uma máquina de normalização. “Seria necessário que se reescrevesse a história da filosofia como a história da resistência à normalização”. Para isso ela diz que deveria haver uma revolução, uma revolução que passasse pela expropriação das técnicas de produção da verdade.
Preciado estudou filosofia em uma universidade jesuíta de Madrid. Lá, leu Marx e entrou em contato com a teologia da libertação. Foi onde entendeu que nenhum texto é sagrado, e que por “texto” podemos entender muitas coisas, ou quase tudo, como “corpo”, “cidade” e também “sexualidade”.
Para ela, o corpo foi sacralizado pelo discurso médico-jurídico tremendamente normativo. “A homossexualidade e a heterossexualidade não existem”, ela diz. “São absurdas ficções políticas”.
Preciado explica que essa noção do corpo sacralizado e normatizado surgiu no século 19 e tem a ver com um regime político de sexo associado à reprodução. A partir daí, qualquer prática sexual não reprodutiva passou a ser condenada como prática desviante. “Pior: usando-se de um discurso médico-científico essa prática passa a ser pensada como patologia”.
Ela pede que despertemos desse sonho histórico falacioso. “Desse delírio da identidade sexual como verdade anatômica e como verdade psicológica. Tudo o que existe é um conjunto de paradigmas científicos e jurídicos que fazem com que o sujeito acabe virando uma ficção de si mesmo”, diz.
Trata-se com certeza de uma filósofa diferente da norma. Há algum tempo decidiu virar cobaia de suas reflexões passando a se administrar todos os dias 50 miligramas de testosterona. “Me interessa entender e decodificar os conjuntos de mediações culturais e políticas que constroem, definem e normalizam a sexualidade”, explica sobre o uso da testosterona.
Sua obra se resume até aqui a três livros: Manifesto Contrassexual, Pornotopia, Testo Junkie. Neles, ela faz uma tentativa de sexualizar o corpo que, segundo ela, foi dessexualizado quando convenções médico-jurídicas passaram a restringir os âmbitos de construção de prazer para transformá-los em âmbito de produção de capital ou de reprodução sexual. Tecla SAP: “Apenas os órgãos de reprodução são pensados como órgãos sexuais. O resto do corpo é dessexualizado”.
As aplicações de testosterona viraram um micro-diário das transformações físicas, mentais, psicológicas que o hormônio produziu, e estão reunidas em um livro – Testo Junkie.
Preciado já foi chamada de o Jimmy Hendrix da filosofia, mas também poderia ser uma espécie de Malcom X da sexualidade. Ao se reapropriar de um insulto e transformá-lo em força, ela muda a perspectiva e nos obriga a ver a partir de outro ponto. “Sou uma utopia delirante”, diz sobre si mesma.
Abaixo, o primeiro texto dela que li e que me arrebatou.
Nós dizemos revolução - Por Beatriz Preciado
Parece que os gurus da velha Europa se obstinam ultimamente a querer explicar aos ativistas dos movimentos Occupy, Indignados, handi-trans-gays-lésbicas-intersex e postporn que não poderemos fazer a revolução porque não temos uma ideologia. Eles dizem “uma ideologia” como minha mãe dizia “um marido”. Pois bem, não precisamos nem de ideologia nem de marido. As novas feministas, não precisamos de marido porque não somos mulheres. Assim como não precisamos de ideologia porque não somos um povo. Nem comunismo nem liberalismo. Nem o refrão católico-muçulmuno-judeu. Falamos uma outra linguagem. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem controlar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos montemos nos cavalos para fugir juntos do abatedouro global. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem integração. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, Branco-Negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos você sabe que teu aparelho de produção de verdade já não funciona mais… Quanto de Galileu precisaremos desta vez para re-aprender a nomear as coisas, nós mesmos? Eles nos fazem a guerra econômica a golpe de facão digital neo-liberal. Mas nós não choraremos a morte do Estado-providência, porque o Estado-providência era também o hospital psiquiátrico, o centro de inserção das pessoas com deficiência, a prisão, a escola patriarcal-colonial-heterocentrada. Está na hora de pôr Foucault na dieta handi-queer e de escrever a morte da Clínica. Está na hora de convidar Marx para um ateliê eco-sexual. Não vamos adotar o estado disciplinar contra o mercado neoliberal. Esses dois já travaram um acordo: na nova Europa, o mercado é a única razão governamental, o Estado se tornou o braço punitivo cuja única função será aquela de re-criar a ficção da identidade nacional por meio do medo securitário. Nós não desejamos nos definir como trabalhadores cognitivos nem como consumidores farmacopornográficos. Nós não somos Facebook, nem Shell, nem Nestlé, nem Pfizer-Wyeth. Não desejamos produzir francês, e tampouco europeu. Não desejamos produzir. Nós somos a rede viva decentralizada. Nós recusamos uma cidadania definida por nossa força de produção ou nossa força de reprodução. Nós queremos uma cidadania total definida pelo compartilhamento das técnicas, dos fluidos, das sementes, da água, dos saberes… Eles dizem que a guerra limpa se fará com drones. Nós queremos fazer amor com os drones. Nossa insurreição é a paz, o afeto total. Eles dizem crise, nós dizemos revolução.