Uma vida comum

De repente, dentro de um carro num domingo à tarde, tudo faz sentido

por Redação em

 

Tínhamos acabado de sair de casa quando Francisco, o mais velho, fez o pedido:

— Quero ouvir “Eva réd”.

— Que música é essa? — perguntei.

— “Redemption Song” ­— respondeu meu cunhado.

Sentada na ter­ceira e última fileira de um desses gigantescos automóveis-fa­mí­lia, esperei para escutar o que diriam, lá da frente, os pais do me­nino de 4 anos.

— Meu filho, esse CD não está aqui — respondeu o pai.

— Ele pediu Bob Marley? — resolvi alardear.

— Pediu. — responderam os pais, com uma naturalidade de fazer pa­recer que o menino havia solicitado a última do Barney.

— Esse menino é um gênio musical — exclamei.

— Como começa, Marcelo? — perguntou minha irmã ao marido.

— Old pirates, yes they rob I… — entoou meu cunhado, buscando adesões.

Enquanto, do banco do motorista, o pai tentava entreter as duas crianças que estavam no carro, eu observava uma ensolarada São Paulo pela janela. Dia das Mães, cidade cheia, restaurantes abarrotados. Ali dentro, eu e aquilo que — não importa o que aconteça — vai ser para sempre meu, a caminho do almoço com a matriarca, em um clube da cidade.

— Per fare un tavolo, ci vuole il legno… — começou a cantar o caçula, em volume máximo, interrompendo o pai

— Ele canta em italiano? — perguntei.

— Canta — respondeu o banco da frente, com uma naturalidade de fazer parecer que o menino entoava “Ciranda, cirandinha”.

— Que tipo de crianças vocês criam em casa? — perguntei.

— Canta com seu irmão — pediram os pais ao mais velho.

— Não quelo. Quelo “Eva réd” — disse o menino, olhando o mundo pela janela do au­tomóvel.

— Cadê a nonna? — perguntou o caçula, in­terrompendo bruscamente a própria me­lo­dia.

— No carro bem atrás da gente — res­pondi.

— Quelo ver — disse o mais velho, já se sol­­tan­do do cinto para pular uma fileira de ban­cos.

— Calma — pediram os pais.

— Estou calma — respondi, mesmo sa­bendo que não era comigo.

Pés, pernas, botas, mãos, cotovelos — em minutos, estavam os dois sobre o meu corpo, olhando pelo vidro de trás e acenando freneticamente para a avó, que nos se­guia rumo ao clube.

— A nonna sumiu — disse o caçula.

— Ela mudou de faixa — respondi.

— Por quê? — perguntou o caçula, no au­ge da fase.

— Porque a nonna é doidona — respondi.

— A nonna é doidona — repetiram os dois.

— Quelo água — disse o mais velho.

— Já estamos chegando — disse o banco da frente.

— Per fare un tavalo… — recomeçou o caçula, em volume ainda mais elevado.

— Quelo “Eva réd” — reclamou o mais velho.

— Ci vuole il legno… — continuou o caçula, subindo um tom.

— Canta com ele — sugeriram os pais.

— Per fare un tavolo… — comecei, mesmo sabendo que não era co­migo.

Ao perceber que havia me seduzido, o caçula fez o inimagi­ná­vel: cantou ainda mais alto.

— Ele tá mexendo a cabecinha e fechando os olhinhos — co­men­­tei.

— Ele faz isso — disse o assento da frente.

— Ci vuole il legno… — continuei.

— Você não sabe a letla — disse o caçula.

— Nem você — respondi.

— Sei sim: Per fare un tavolo… — emendou ele, mexendo a ca­be­cinha de forma mais elástica.

— Ci vuole il legno… — fui com ele, mexendo minha cabeçona.

Quando eu era pequena, sonhava com uma família bem gran­de e com todos em volta da mesa, num domingo qualquer. Mas, aos 16, ao beijar uma outra mulher na boca pela primeira vez, esse so­nho deu lugar ao de ser quem sou, e viver minha própria verda­de. Hoje sei que não haverá domingos no parque com minha tro­pa miúda particular. Mas sei também que minha tropa miúda in­clui os dois rapazes dentro do carro. E percebo que, embora pa­re­ça exoticamente diferente, sou apenas aben­çoadamen­te co­mum. Dentro do automóvel, saboreio parte do que sou e sorrio: nunca estarei sozinha.

— Por que você palou de cantar, Dinda? — perguntou o caçula.

— Wont you help to sing, the songs of freedom, it’s all I eva réd, redemption songs — cantei bem alto, para alegria do mais velho, que virou o rosto para mim e sorriu.

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