Uma noite maldormida

Uma crônica sobre uma mãe, seus três filhos, um pote de sorvete e todo o amor do mundo

por Milly Lacombe em

O telefone tocou pouco antes da meia-noite e o identificador de chamadas mostrou o nome de minha irmã. Como era uma terça-feira, e Adriana tem três filhos pequenos, aquela hora avançada não podia ser boa coisa.

– Tá dormindo? – ela perguntou.

– Não – respondi.

– A mamãe não passou bem e o Kiko teve que ir com ela para o hospital.

– O que aconteceu?

– Os sintomas são de infarto.

Eu tinha uns 8 anos quando minha mãe me levou para andar de kart em uma pista que existia na esquina da rua Estados Unidos com a avenida Brigadeiro Luis Antônio, em São Paulo, bem perto da nossa casa. Não sei onde ela colocou minhas irmãs e meu irmão para me presentear com aquele tempo só nosso, mas o fato é que lá estávamos apenas ela e eu. Adriana, 6, Nininha, 4, e Kiko, 2, os que requeriam mais atenção, talvez tenham ficado sob a tutela da Nonna.

Lembro de ter chegado à pista, olhado em volta e de ter visto duplas formadas apenas por pais e filhos. Éramos as únicas mulheres ali.

Minha mãe era a motorista oficial da casa, já que meu pai nunca aprendeu a trocar marchas e pisar na embreagem em sincronia. Era capaz de recitar páginas inteiras de Proust, mas incapaz de mudar da primeira para a segunda. Já minha mãe era uma especialista, fato que ficou ainda mais evidente naquele dia em que, juntas, pilotamos um kart em altíssima velocidade – ou no que assim parecia ser para mim –, vencemos a corrida e viramos a atração do lugar. Saí de lá com a certeza de que não havia no mundo um ser humano mais poderoso do que minha mãe. E com a convicção de que ela para sempre me protegeria. Meu super-herói, afinal, morava comigo.

Desliguei o telefone, olhei minha mulher que, já na cama, embalava um sono macio, dei um beijo em sua testa e saí. Seria aquela a noite mais triste da minha vida? Avançando os sinais vermelhos em direção ao hospital, me lembrei do dia em que andamos de kart e de como fomos felizes. Me lembrei do dia em que ela foi pra cima da menina que me bateu no clube e do dia em que derrubou o policial federal no aeroporto para, de forma completamente ilegal, me dar as boas-vindas antes que eu pudesse passar pela alfândega. Do dia em que ela arrancou da quadra de tênis o babaca mais velho que não me deixava jogar e do dia em que pulou o balcão da lanchonete para me servir de Coca-Cola porque o atendente parecia fingir que não me via pedir o refrigerante. Dirigindo para o hospital me lembrei de uma época em que era protegida da crueldade do mundo, uma época em que acreditava que a vida era para ser brincada, e nada mais do que isso.

Kiko, que é medico, foi me encontrar na recepção do hospital.

– O que ela tem?

– Não sei. Pedi alguns exames, fiz um eletro e nada foi constatado. Mas ela estava com muita dor na boca do estômago, chorando sem conseguir falar, e me descreveu a coisa com todo o requinte de detalhes de um infarto.

– Não faz sentido.

– Não faz mesmo, mas eu preciso eliminar essa possibilidade.

Sorvete e Frumello
Quando entrei no quarto e vi minha mãe ligada a dois tubos de soro, deitada sem se mexer numa maca, entendi, talvez pela primeira vez na vida, que aquela mulher que um dia me protegeu da vida tinha envelhecido. Aos 72, e ainda muito ativa e inquieta, aquela imagem inerte não tinha precedentes. Puxei uma escadinha que estava embaixo da maca para me sentar na altura do rosto dela.

– Não precisava vir. Não é nada – ela disse virando o rosto para poder me olhar.

– E eu ia perder uma noite no hospital? – respondi.

E ali, ao lado dela, permanecemos os três, Adriana, Kiko e eu, colocando água em sua boca seca, conversando para fazer com que ela se distraísse, ajeitando o travesseiro atrás de sua cabeça. Por volta das duas e meia da manhã, meu irmão saiu para ir até o laboratório do hospital ver os exames de sangue que pediu para serem feitos.

– Mãe, o que você comeu antes de sentir essa dor? – perguntei para puxar conversa.

– Jantei um prato pequeno de macarrão na casa de sua irmã.

– Só?

–Só. Depois parei no supermercado para comprar um sorvete porque fazia muito calor.

– E você tomou o sorvete?

– Tomei.

– Quanto de sorvete? – perguntou Adriana, sempre a mais esperta.

– Um pote.

– Um pote? – reagiu Adriana, sempre a mais brava.

– É.

– Qual o tamanho do pote, mãe?

– Assim – e fez com a mão o que me pareceu um tamanho exageradamente grande.

– Isso não é um pote! Isso é uma caixa! – esbravejou Adriana, sempre a mais mandona.

Exatamente nessa hora, meu irmão voltou do laboratório.

– Kiko, você sabia que ela tomou um pote assim de sorvete antes de sentir a dor? – perguntei.

– Ela falou.

– A dor não pode ser isso?

– Do jeito que ela me descreveu e do jeito que eu a vi na cama é estranho que seja isso. Mas pode, claro. Eu preciso apenas descartar qualquer problema no coração – falou o cientista. E, antes de sair da sala para solicitar um novo eletro, emendou: – Mas se fosse isso ela estaria com gases.

Minha avó morreu aos 99 anos depois de comer um saco de balas Frumello e esquecer de tirar o plástico transparente. Seria minimamente concebível agora perder a mãe entalada em sorvete? Um enfarto soaria certamente menos estapafúrdio.

Lado a lado
Às quatro da manhã, saímos com minha mãe do hospital e, como nenhum exame fora conclusivo, ainda sem conseguir entender o que tinha acontecido. Meu irmão nos deixou na recepção e foi buscar o carro. De pé na calçada, ficamos minha mãe, Adriana e eu. Apertando a mão envelhecida de quem tantas vezes me conduziu com segurança para o outro lado da rua, respirei aliviada por estar com ela a meu lado. E entendi que, mesmo enfraquecida, mesmo sem conseguir se mover com a destreza de antes, mesmo longe de ser aquela ágil piloto que um dia me levou para andar de kart na esquina de casa, ela ainda é meu centro de gravidade. E que eu nunca estarei pronta para perdê-la. Olhei para ela para dizer que estava feliz por estar segurando sua mão, mas, como sempre, foi dela a primeira palavra.

– Vocês podem ir lá para dentro?

– Por que, mãe?

– Eu acho que os gases estão chegando.

* A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br

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